conto de Margarete Solange
– 1 –
Era uma tarde quente e
monótona de domingo. Fred não podia imaginar que esse dia seria, para sempre,
gravado em sua memória, até que o telefone tocou. Preguiçosamente abandonou,
sobre a poltrona, o livro que lia e esticou-se para alcançar o aparelho
telefônico. Após trocar algumas palavras com a voz feminina que lhe falava do
outro lado da linha, desligou. Encaminhou-se, pesaroso, até a janela do pequeno
apartamento que ficava no terceiro andar do velho prédio onde morava.
– Irei... – murmurou falando consigo mesmo. – Irei sim...
sei que Sofia estará, como sempre, cercada por muitos amigos... mas que
importância isso tem agora?... o que importa é que poderei tê-la diante dos
meus olhos novamente... afinal, faz tanto tempo que desejo vê-la mas não tive
coragem suficiente para procurá-la... preciso ir... fui o único culpado por
tudo que aconteceu. Sei que de nada adiantaria dizer-lhe isso agora; mas, mesmo
assim, direi. Retirou-se da janela apressadamente, seguiu para o quarto,
pensativo. Procurou entre as poucas camisas, a de cor azul clara, último
presente dado por Sofia. Pareceu ouvi-la, naquele instante, sussurrar ao seu
ouvido com voz doce e alegre, como costumava fazer quando eram ainda namorados:
“Gosto quando usa essa camisa azul...”
Uma
saudade imensa e cruel feriu-lhe o peito. Era consciente do quanto tinha
magoado a única mulher que amara na vida. Precisava pedir-lhe perdão, mesmo
sabendo que sua atitude não mais faria Sofia voltar aos seus braços.
Desceu as escadas
do prédio, a passos largos. Tinha pressa. Pensou em comprar um buquê de flores
para a amada, embora soubesse que ela não as receberia sorridente, como faria
se tivesse tido essa ideia em tempos passados. Ao lembrar o quanto ela era
sensível e romântica, torturou-se, sentindo-se cruel por não tê-la compreendido.
– Nunca lhe dei flores antes...
– matutou consigo mesmo. – É tarde demais para fazer isso agora!
Seguiu o seu caminho apressado,
precisava chegar ao local combinado às quatro horas. Se não conseguisse chegar
a tempo, nunca mais a veria.
As lembranças felizes da época
em que estiveram juntos vinham torturar-lhe a mente. Deixando-o na mais completa
agonia.
– Como fui egoísta!... – acusava-se em pensamentos. – Como pude
ter exigido que deixasse de ser o que era, para ser o que eu queria que
fosse?... Como pude tê-la condenado pelo entusiasmo que sentia, pela capacidade
de viver intensamente a vida?... Ela parecia não conhecer mágoas e dissabores
até que eu entrei e saí de sua vida.
Sofia, com seu jeito exuberante e descontraído de ser, atraía
muitos amigos. Apreciava estar em meio a muitas pessoas conversando
alegremente. Sempre que isso acontecia, Fred, rapaz sisudo, reservado,
mantinha-se a distância, observando e julgando o comportamento, por vezes até
mesmo infantil, da namorada e de seus jovens amigos. Matutava consigo mesmo a
respeito do que poderia fazer a fim de torná-la diferente, pacata e séria como
ele. Acreditava que, se assim fosse, poderia tê-la somente para si.
Ao passar diante de um jardim
florido, aproximou-se do muro baixo e colheu, com gestos mecânicos uma rosa vermelha.
Não era a maior, nem a mais bela que havia. A pressa o impediu de ser, naquele
instante, o homem perfeccionista que era, capaz de analisar cuidadosamente, até
concluir qual dentre as muitas rosas seria a ideal para ser ofertada à bela
Sofia. Guardou-a no bolso da camisa deixando somente o talo à mostra, e
prosseguiu apressando ainda mais os passos. Olhou o relógio, calculou os
minutos que lhe faltavam para que pudesse finalmente chegar ao seu destino.
– 2 –
Entrou pelo portão de ferro, sem reparar na ferrugem que o consumia.
Olhou os arredores, virou-se para a direita, seguindo a informação que lhe fora
dada pelo telefone, e seguiu em frente até que reconheceu, a distância, alguns
dos amigos de Sofia. Deteve-se, receoso. Lembrou-se de que poderia não ser
bem-vindo ali, e ocultou-se, covardemente, entre as árvores.
Não era fácil enxergá-la por entre as pessoas que a cercavam, porém,
tanto fez que conseguiu vê-la, embora por um breve momento. Os seus lábios
esboçavam um leve sorriso. Foi essa a única vez que a viu sorrir sem mostrar os
dentes alvos e bonitos. O seu vestido branco a tornava ainda mais angelical. Sentiu
ciúmes dos que a cercavam de perto. Afastou-se. Se pudesse, mandaria que todos
se fossem, para poder estar a sós com ela, como costumava fazer até há bem
poucos meses passados. Mas que direito tinha de fazer isso?... Seus amigos sempre
lhe foram leais, jamais a abandonaram. Foi ele o único que não soube compreendê-la.
Era natural que já não o vissem com bons olhos. Seu castigo era bem merecido.
Decidiu
não se apresentar enquanto durasse a cerimônia. Aguardaria até que as pessoas
se retirassem para que pudesse aproximar-se e falar-lhe a sós. Tinha tanto para
dizer.
Sentou-se
e, escorando a cabeça ao tronco de uma árvore, reviveu cenas do passado. As
expressões de seu rosto e gestos denunciavam que sentia fortes dores no peito,
ou mesmo na alma.
– Sofia!...
Sofia!... – pronunciou baixinho. – Por que demorei tanto para descobrir o
quanto a amava?
Pensou em desistir de esperar. Iria embora, e
não mais confessaria o quanto tinha sido castigado pela saudade, sem que jamais
tivesse tido coragem de procurá-la para dizer-lhe isso. Não, não iria embora
desta vez. Esperaria o tempo que fosse necessário, para poder dizer-lhe tudo
que estava preso dentro de seu ser, incomodando, latejando como uma ferida
infectada.
– 3 –
Logo
que todos se foram, deixou seu esconderijo e caminhou até onde Sofia estava.
Ela que era tão encantadora, sensível, vibrante, cheia de vida, estava agora
totalmente modificada: fria e insensível.
Fred
deteve-se a uma certa distância: estava consciente de que nada do que dissesse
ou fizesse mudaria aquela situação, mas, mesmo assim, precisava dizer tudo que
estava sentindo. Sussurrou seu nome e, sem qualquer rodeio, iniciou seu desabafo:
–
Sofia... como senti sua falta – tentou sorrir, estava demasiadamente tenso e
angustiado. – Antes não a procurei porque acreditei que não mais queria me ver.
Achei que me esquecer seria a melhor coisa que você tinha a fazer. Sei que não
conseguiu me esquecer. Sua amiga me disse isso quando telefonou, convidando-me
para estar aqui...
Silenciou
repentinamente, como se desejasse ouvir algo da parte de Sofia, que trouxesse
alívio a seus tormentos. Não esperou muito. Resolveu romper novamente o
silêncio que envolvia o entardecer.
–
Esperei muitas vezes que voltasse a me procurar, como sempre fazia, afinal não
era orgulhosa como eu... somos tão diferentes... você tão cheia de sentimentos
nobres e eu... – abaixou a cabeça – envergonho-me por ter sido tão duro... egoísta...
você não merecia... ou melhor... eu não a merecia.
Calou-se
momentaneamente. Sua garganta estava seca. E a multidão de palavras que tinha
presas dentro de si parecia querer fluir todas de uma só vez. Não era um homem
dado a externar suas emoções, porém, nessa tarde, não analisou nem selecionou o
que deveria dizer.
– Só hoje fiquei sabendo
porque você não voltou a me encontrar. Você pode não acreditar no que vou
dizer-lhe, mas... eu... talvez, inconscientemente, quis me punir por não a merecer,
mandando-a ir embora de minha vida. Menti quando disse que não a amava... –
desviou o olhar para a paisagem em volta, estava muito emocionado – menti para
mim mesmo. Quis convencer-me de que era melhor que não nos víssemos mais. Posso
imaginar o quanto sofreu porque foi desprezada... humilhada por alguém que
amava tanto...
A tarde já não estava
quente, no entanto, Fred transpirava. As costas de sua camisa estavam bastante
molhadas de suor. Suspirou, entrelaçou os dedos, ergueu os olhos para o alto e
prosseguiu com voz fraca, pausada, movendo os lábios assim como quem tira do
íntimo uma prece aflita.
– Jamais duvidei do seu
amor por mim, acredite... acho que era isso que fazia aumentar ainda mais o meu
medo... – desatou a rir. – Parece engraçado, mas não sei explicar ao certo o
que me fazia sentir tanto medo... Talvez eu tivesse medo de que você mudasse
seu jeito de ser para tentar me agradar, e eu sabia que você não seria feliz
fingindo ser o que não era...
Desse ponto em diante,
passou a falar alto e ligeiro, como se desejasse dizer tudo que sentia, num
impulso único.
– Deve estar pensando
que estou meio louco, não é mesmo?... e talvez eu esteja realmente. Há momentos
na vida em que a lucidez nos foge... Creio que minha sensatez me abandonou
nesse instante. Como você mesma sabe, não costumo me expor a situações em que
sinto que estou sendo ridículo... quem sabe fosse melhor que eu não tivesse
vindo... mas já que estou aqui, direi tudo que tenho para dizer-lhe... – baixou
os olhos tristemente e voltou a falar com voz tranquila. – Não adianta mais te
pedir perdão, eu sei...
Emudeceu. Fechou os olhos e desejou que Sofia
se aproximasse nesse instante e o abraçasse, concedendo-lhe o perdão, como
costumava fazer em outros tempos; porém, ela não o fez. Fred nem ao menos
conseguia sentir pena de si mesmo, porque o sentimento de culpa o acusava,
gritando em sua consciência que ele merecia tudo que estava acontecendo.
– Não adianta mais, não
é?... responda!... não me torture com o seu silêncio – não pôde mais conter o
pranto. – Responda-me qualquer coisa... bem sabe que ouvir sua voz nesse momento
traria alívio para meus tormentos...
Escondeu o rosto entre
as mãos, chorou alto e copiosamente. O vento bateu-lhe levemente nas costas,
assim como se fosse um amigo tentando confortá-lo. Porém, Fred não queria ser
consolado; não desse modo. Preferia que tudo voltasse a ser como antes quando,
em outros tempos não muito distantes, o vento brincava jogando de um lado para
outro os cabelos revoltos de sua amada.
O fim da tarde também
não tinha a mesma beleza de outrora, tudo em volta estava melancólico.
Interiormente, Fred sentia, mais do que nunca, um grande vazio.
– 4 –
Não
demorou muito, susteve o pranto. Não podia desperdiçar o tempo com lágrimas.
Ainda havia tanto que dizer...
– Você era o que de mais precioso eu tinha, mas porque só agora
percebo isso? Eu amava seu jeito de falar, de sorrir... Como pude ser tão cruel
com nós dois? – impacientou-se, observando os arredores como se temesse que
alguém se aproximasse e ouvisse o que dizia. Por fim, aquietou-se e prosseguiu
seu desabafo com olhar perdido.
– Tudo
poderia ter sido diferente, agora sei – meneou a cabeça. – Não quero seu
perdão, ainda que desejasse concedê-lo... Não me perdoo pelo que fiz... É tarde
demais, eu sei... mesmo assim quero que saiba que a amo, que sempre a amei –
misturou o riso às lágrimas. – Sempre a amei, e negava isso até para mim mesmo
– voltou o olhar na direção do sol poente, e manteve-se assim contemplando a
vermelhidão do céu sem interromper o seu discurso. – Se eu pudesse abraçá-la
nesse instante... era tudo que eu mais queria – mudou repentinamente o tom de
voz como se brigasse consigo mesmo. – Quando podia abraçá-la, a desprezei...
como posso achar que mereço sua misericórdia, depois de tudo que a fiz sofrer?...
Fixou os olhos na
areia remexida pela impaciência de seus pés. Cerrou os dentes e deixou escapar
um gemido abafado.
– Não podia esperar que se vingasse de mim
desse modo cruel... é uma sentença dura demais, como poderei suportar?... –
silenciou.
O
cheiro das flores que havia pelos arredores o fez lembrar a rosa vermelha que
trazia no bolso de sua camisa.
– Estou usando a camisa de que você gosta,
reparou?... Não, não reparou. – Deixou-se cair de joelhos sobre a areia marrom.
– Perdi-a pra sempre... mereço esse castigo.
Ergueu os olhos para o
poente, o sol já havia partido, deixando a tarde ainda mais sem sentido. Alguns
pássaros equilibravam-se sobre os fios que saíam de uns não tão altos postes;
outros, ocultando-se entre as folhagens das árvores, recolhiam-se.
– Se eu
soubesse que não mais me procurou porque não podia... se eu soubesse que estava
doente... nada disso importa agora pra você, não é?... – levantou-se. – É
melhor que eu me vá, já lhe disse tudo que gostaria que soubesse. Não vou conseguir
esquecê-la... mas jamais voltarei a esse lugar.
Correu
rapidamente o olhar pelos arredores, percebeu que alguém o observava a distância,
não se importou. Retirou a rosa vermelha do bolso, curvou-se e a pôs delicadamente
sobre a lápide de mármore branca, onde a amada jazia. Ergueu-se, e se foi,
passos lentos, olhar perdido e triste, sem prestar atenção aos diversos túmulos
que surgiam em seu derredor. A maioria deles, com paredes brancas, descuidadas
e flores já murchas sobre suas portas fechadas; alguns eram apenas uma lombada
de areia batida, com singelas cruzes de madeira fincadas sobre ela.
Ao chegar junto ao
portão de ferro na entrada do silencioso cemitério, deteve-se por alguns instantes:
pareceu ter intenção de retornar... mas retornar para quê? Dirigiu o olhar na
direção onde se encontrava fria, pálida e inerte a única mulher que amara, e
como se ela fosse capaz de ouvi-lo, sussurrou:
– Adeus, Sofia!
Fonte 1: Margarete Solange
Mais Belo que o Por do Sol
e outros
contos
Santos: 2000
Fonte 2: Margarete Solange.
Ninguém é Feliz sem Problemas.
Fundação Vingt-un Rosado,
2009.
Fonte 3: Contos Reunidos,
Sarau das Letras, 2014, p. 163-170