O homem pode não ser rico, mas se ele tiver na bagagem a leitura será mais que isso: será sábio. A sabedoria, sem dúvida, é grandiosa, é tudo na vida, não na morte. Na morte, todos os homens são igualmente leigos.

Margarete Solange. Contos Reunidos, p. 98

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Tarde Demais

conto de Margarete Solange

– 1 – 

Era uma tarde quente e monótona de domingo. Fred não podia imaginar que esse dia seria, para sempre, gravado em sua memória, até que o telefone tocou. Preguiçosamente abandonou, sobre a poltrona, o livro que lia e esticou-se para alcançar o aparelho telefônico. Após trocar algumas palavras com a voz feminina que lhe falava do outro lado da linha, desligou. Encaminhou-se, pesaroso, até a janela do pequeno apartamento que ficava no terceiro andar do velho prédio onde morava.
         – Irei... – murmurou falando consigo mesmo. – Irei sim... sei que Sofia estará, como sempre, cercada por muitos amigos... mas que importância isso tem agora?... o que importa é que poderei tê-la diante dos meus olhos novamente... afinal, faz tanto tempo que desejo vê-la mas não tive coragem suficiente para procurá-la... preciso ir... fui o único culpado por tudo que aconteceu. Sei que de nada adiantaria dizer-lhe isso agora; mas, mesmo assim, direi. Retirou-se da janela apressadamente, seguiu para o quarto, pensativo. Procurou entre as poucas camisas, a de cor azul clara, último presente dado por Sofia. Pareceu ouvi-la, naquele instante, sussurrar ao seu ouvido com voz doce e alegre, como costumava fazer quando eram ainda namorados: “Gosto quando usa essa camisa azul...”
Uma saudade imensa e cruel feriu-lhe o peito. Era consciente do quanto tinha magoado a única mulher que amara na vida. Precisava pedir-lhe perdão, mesmo sabendo que sua atitude não mais faria Sofia voltar aos seus braços.
         Desceu as escadas do prédio, a passos largos. Tinha pressa. Pensou em comprar um buquê de flores para a amada, embora soubesse que ela não as receberia sorridente, como faria se tivesse tido essa ideia em tempos passados. Ao lembrar o quanto ela era sensível e romântica, torturou-se, sentindo-se cruel por não tê-la compreendido.
– Nunca lhe dei flores antes... – matutou consigo mesmo. – É tarde demais para fazer isso agora!
Seguiu o seu caminho apressado, precisava chegar ao local combinado às quatro horas. Se não conseguisse chegar a tempo, nunca mais a veria.
As lembranças felizes da época em que estiveram juntos vinham torturar-lhe a mente. Deixando-o na mais completa agonia.
– Como fui egoísta!... – acusava-se em pensamentos. – Como pude ter exigido que deixasse de ser o que era, para ser o que eu queria que fosse?... Como pude tê-la condenado pelo entusiasmo que sentia, pela capacidade de viver intensamente a vida?... Ela parecia não conhecer mágoas e dissabores até que eu entrei e saí de sua vida.
         Sofia, com seu jeito exuberante e descontraído de ser, atraía muitos amigos. Apreciava estar em meio a muitas pessoas conversando alegremente. Sempre que isso acontecia, Fred, rapaz sisudo, reservado, mantinha-se a distância, observando e julgando o comportamento, por vezes até mesmo infantil, da namorada e de seus jovens amigos. Matutava consigo mesmo a respeito do que poderia fazer a fim de torná-la diferente, pacata e séria como ele. Acreditava que, se assim fosse, poderia tê-la somente para si.         
Ao passar diante de um jardim florido, aproximou-se do muro baixo e colheu, com gestos mecânicos uma rosa vermelha. Não era a maior, nem a mais bela que havia. A pressa o impediu de ser, naquele instante, o homem perfeccionista que era, capaz de analisar cuidadosamente, até concluir qual dentre as muitas rosas seria a ideal para ser ofertada à bela Sofia. Guardou-a no bolso da camisa deixando somente o talo à mostra, e prosseguiu apressando ainda mais os passos. Olhou o relógio, calculou os minutos que lhe faltavam para que pudesse finalmente chegar ao seu destino.

– 2 –


Entrou pelo portão de ferro, sem reparar na ferrugem que o consumia. Olhou os arredores, virou-se para a direita, seguindo a informação que lhe fora dada pelo telefone, e seguiu em frente até que reconheceu, a distância, alguns dos amigos de Sofia. Deteve-se, receoso. Lembrou-se de que poderia não ser bem-vindo ali, e ocultou-se, covardemente, entre as árvores.
Não era fácil enxergá-la por entre as pessoas que a cercavam, porém, tanto fez que conseguiu vê-la, embora por um breve momento. Os seus lábios esboçavam um leve sorriso. Foi essa a única vez que a viu sorrir sem mostrar os dentes alvos e bonitos. O seu vestido branco a tornava ainda mais angelical. Sentiu ciúmes dos que a cercavam de perto. Afastou-se. Se pudesse, mandaria que todos se fossem, para poder estar a sós com ela, como costumava fazer até há bem poucos meses passados. Mas que direito tinha de fazer isso?... Seus amigos sempre lhe foram leais, jamais a abandonaram. Foi ele o único que não soube compreendê-la. Era natural que já não o vissem com bons olhos. Seu castigo era bem merecido.
Decidiu não se apresentar enquanto durasse a cerimônia. Aguardaria até que as pessoas se retirassem para que pudesse aproximar-se e falar-lhe a sós. Tinha tanto para dizer.
Sentou-se e, escorando a cabeça ao tronco de uma árvore, reviveu cenas do passado. As expressões de seu rosto e gestos denunciavam que sentia fortes dores no peito, ou mesmo na alma.
– Sofia!... Sofia!... – pronunciou baixinho. – Por que demorei tanto para descobrir o quanto a amava?
 Pensou em desistir de esperar. Iria embora, e não mais confessaria o quanto tinha sido castigado pela saudade, sem que jamais tivesse tido coragem de procurá-la para dizer-lhe isso. Não, não iria embora desta vez. Esperaria o tempo que fosse necessário, para poder dizer-lhe tudo que estava preso dentro de seu ser, incomodando, latejando como uma ferida infectada.

– 3 –

Logo que todos se foram, deixou seu esconderijo e caminhou até onde Sofia estava. Ela que era tão encantadora, sensível, vibrante, cheia de vida, estava agora totalmente modificada: fria e insensível.
Fred deteve-se a uma certa distância: estava consciente de que nada do que dissesse ou fizesse mudaria aquela situação, mas, mesmo assim, precisava dizer tudo que estava sentindo. Sussurrou seu nome e, sem qualquer rodeio, iniciou seu desabafo:
– Sofia... como senti sua falta – tentou sorrir, estava demasiadamente tenso e angustiado. – Antes não a procurei porque acreditei que não mais queria me ver. Achei que me esquecer seria a melhor coisa que você tinha a fazer. Sei que não conseguiu me esquecer. Sua amiga me disse isso quando telefonou, convidando-me para estar aqui...
Silenciou repentinamente, como se desejasse ouvir algo da parte de Sofia, que trouxesse alívio a seus tormentos. Não esperou muito. Resolveu romper novamente o silêncio que envolvia o entardecer.
– Esperei muitas vezes que voltasse a me procurar, como sempre fazia, afinal não era orgulhosa como eu... somos tão diferentes... você tão cheia de sentimentos nobres e eu... – abaixou a cabeça – envergonho-me por ter sido tão duro... egoísta... você não merecia... ou melhor... eu não a merecia.
Calou-se momentaneamente. Sua garganta estava seca. E a multidão de palavras que tinha presas dentro de si parecia querer fluir todas de uma só vez. Não era um homem dado a externar suas emoções, porém, nessa tarde, não analisou nem selecionou o que deveria dizer.
– Só hoje fiquei sabendo porque você não voltou a me encontrar. Você pode não acreditar no que vou dizer-lhe, mas... eu... talvez, inconscientemente, quis me punir por não a merecer, mandando-a ir embora de minha vida. Menti quando disse que não a amava... – desviou o olhar para a paisagem em volta, estava muito emocionado – menti para mim mesmo. Quis convencer-me de que era melhor que não nos víssemos mais. Posso imaginar o quanto sofreu porque foi desprezada... humilhada por alguém que amava tanto...
A tarde já não estava quente, no entanto, Fred transpirava. As costas de sua camisa estavam bastante molhadas de suor. Suspirou, entrelaçou os dedos, ergueu os olhos para o alto e prosseguiu com voz fraca, pausada, movendo os lábios assim como quem tira do íntimo uma prece aflita.
– Jamais duvidei do seu amor por mim, acredite... acho que era isso que fazia aumentar ainda mais o meu medo... – desatou a rir. – Parece engraçado, mas não sei explicar ao certo o que me fazia sentir tanto medo... Talvez eu tivesse medo de que você mudasse seu jeito de ser para tentar me agradar, e eu sabia que você não seria feliz fingindo ser o que não era...
Desse ponto em diante, passou a falar alto e ligeiro, como se desejasse dizer tudo que sentia, num impulso único.
– Deve estar pensando que estou meio louco, não é mesmo?... e talvez eu esteja realmente. Há momentos na vida em que a lucidez nos foge... Creio que minha sensatez me abandonou nesse instante. Como você mesma sabe, não costumo me expor a situações em que sinto que estou sendo ridículo... quem sabe fosse melhor que eu não tivesse vindo... mas já que estou aqui, direi tudo que tenho para dizer-lhe... – baixou os olhos tristemente e voltou a falar com voz tranquila. – Não adianta mais te pedir perdão, eu sei...
 Emudeceu. Fechou os olhos e desejou que Sofia se aproximasse nesse instante e o abraçasse, concedendo-lhe o perdão, como costumava fazer em outros tempos; porém, ela não o fez. Fred nem ao menos conseguia sentir pena de si mesmo, porque o sentimento de culpa o acusava, gritando em sua consciência que ele merecia tudo que estava acontecendo.
 – Não adianta mais, não é?... responda!... não me torture com o seu silêncio – não pôde mais conter o pranto. – Responda-me qualquer coisa... bem sabe que ouvir sua voz nesse momento traria alívio para meus tormentos...
Escondeu o rosto entre as mãos, chorou alto e copiosamente. O vento bateu-lhe levemente nas costas, assim como se fosse um amigo tentando confortá-lo. Porém, Fred não queria ser consolado; não desse modo. Preferia que tudo voltasse a ser como antes quando, em outros tempos não muito distantes, o vento brincava jogando de um lado para outro os cabelos revoltos de sua amada.
O fim da tarde também não tinha a mesma beleza de outrora, tudo em volta estava melancólico. Interiormente, Fred sentia, mais do que nunca, um grande vazio.

– 4 –


Não demorou muito, susteve o pranto. Não podia desperdiçar o tempo com lágrimas. Ainda havia tanto que dizer...
– Você era o que de mais precioso eu tinha, mas porque só agora percebo isso? Eu amava seu jeito de falar, de sorrir... Como pude ser tão cruel com nós dois? – impacientou-se, observando os arredores como se temesse que alguém se aproximasse e ouvisse o que dizia. Por fim, aquietou-se e prosseguiu seu desabafo com olhar perdido.
– Tudo poderia ter sido diferente, agora sei – meneou a cabeça. – Não quero seu perdão, ainda que desejasse concedê-lo... Não me perdoo pelo que fiz... É tarde demais, eu sei... mesmo assim quero que saiba que a amo, que sempre a amei – misturou o riso às lágrimas. – Sempre a amei, e negava isso até para mim mesmo – voltou o olhar na direção do sol poente, e manteve-se assim contemplando a vermelhidão do céu sem interromper o seu discurso. – Se eu pudesse abraçá-la nesse instante... era tudo que eu mais queria – mudou repentinamente o tom de voz como se brigasse consigo mesmo. – Quando podia abraçá-la, a desprezei... como posso achar que mereço sua misericórdia, depois de tudo que a fiz sofrer?...
          Fixou os olhos na areia remexida pela impaciência de seus pés. Cerrou os dentes e deixou escapar um gemido abafado.
         – Não podia esperar que se vingasse de mim desse modo cruel... é uma sentença dura demais, como poderei suportar?... – silenciou.
O cheiro das flores que havia pelos arredores o fez lembrar a rosa vermelha que trazia no bolso de sua camisa.
 – Estou usando a camisa de que você gosta, reparou?... Não, não reparou. – Deixou-se cair de joelhos sobre a areia marrom. – Perdi-a pra sempre... mereço esse castigo.
Ergueu os olhos para o poente, o sol já havia partido, deixando a tarde ainda mais sem sentido. Alguns pássaros equilibravam-se sobre os fios que saíam de uns não tão altos postes; outros, ocultando-se entre as folhagens das árvores, recolhiam-se.
– Se eu soubesse que não mais me procurou porque não podia... se eu soubesse que estava doente... nada disso importa agora pra você, não é?... – levantou-se. – É melhor que eu me vá, já lhe disse tudo que gostaria que soubesse. Não vou conseguir esquecê-la... mas jamais voltarei a esse lugar.
         Correu rapidamente o olhar pelos arredores, percebeu que alguém o observava a distância, não se importou. Retirou a rosa vermelha do bolso, curvou-se e a pôs delicadamente sobre a lápide de mármore branca, onde a amada jazia. Ergueu-se, e se foi, passos lentos, olhar perdido e triste, sem prestar atenção aos diversos túmulos que surgiam em seu derredor. A maioria deles, com paredes brancas, descuidadas e flores já murchas sobre suas portas fechadas; alguns eram apenas uma lombada de areia batida, com singelas cruzes de madeira fincadas sobre ela.
Ao chegar junto ao portão de ferro na entrada do silencioso cemitério, deteve-se por alguns instantes: pareceu ter intenção de retornar... mas retornar para quê? Dirigiu o olhar na direção onde se encontrava fria, pálida e inerte a única mulher que amara, e como se ela fosse capaz de ouvi-lo, sussurrou:
         – Adeus, Sofia!

Fonte 1: Margarete Solange
Mais Belo que o Por do Sol 
e outros contos
Santos: 2000
Fonte 2: Margarete Solange.
Ninguém é Feliz sem Problemas.
Fundação Vingt-un Rosado, 2009.
Fonte 3: Contos Reunidos,
Sarau das Letras, 2014, p. 163-170