O homem pode não ser rico, mas se ele tiver na bagagem a leitura será mais que isso: será sábio. A sabedoria, sem dúvida, é grandiosa, é tudo na vida, não na morte. Na morte, todos os homens são igualmente leigos.

Margarete Solange. Contos Reunidos, p. 98

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Sombras

                        poesia de Margarete Solange

Quando a lua está cheia, 
Lembra-me você
E isso me faz muito triste.
Não sei explicar por que está nos meus sonhos,
Nem por que entrou em minha vida.
Às vezes tento odiá-lo, porém não consigo.
Você é como um fantasma,
Tento matá-lo e penso que está morto,
Mas um fantasma não morre
Nem se torna real...
Fantasma mau!...
Assusta-me e foge tão depressa
Que quando abro os olhos
Já não está junto a mim.
Minha sombra, meu lamento...
Lado ruim de mim mesma
Que não se encaixa em lugar nenhum.
Não entre mais nos meus sonhos,
Não invada os meus pensamentos.
Não há lugar para você em minha vida,
Sua presença escurece os meus dias.
Você é a noite sem luar,
Mas a lua cheia me faz lembrar de você...
E não posso explicar por quê.
Um dia vou despertar e perceber
Que o pesadelo acabou
E quando eu o encontrar casualmente pelas ruas,
As sombras não me importunarão mais,
Não mais...
Você será apenas um homem como qualquer outro
E eu estarei livre de seu fantasma
Para sempre.


Fotografia de Felipe Galdino


.
Fonte 1: Margarete Solange. 
Um Chão Maior, p. 26
Santos, 2001
Fonte 2: Margarete Solange. 
Inventor de Poesia,  
Queima-Bucha, 2010, p 18.

Horas Perdidas

 poesia de Margarete Solange

Quarenta anos...
Dias e horas vividas sem realizar grandes feitos.
Ocupando-me com serviços banais
Que não prometem frutos no amanhã.
Fazendo e desfazendo todos os dias as mesmas coisas.

Quarenta anos,
Sem ter conhecido o mundo em derredor de mim,
Sem ter conhecido a mim mesma profundamente.
Quantas horas perdidas em lamentos e lágrimas,
Bebendo e comendo
Apenas para cumprir a sequência dos dias.

Quarenta anos,
Dia após dia querendo crescer em palavras,
Buscando o sentido da verdade e da beleza.
Tentando entender o comportamento das pessoas
E sentindo-me tão incompreendida.

Vão-se os dias,
Aprendo palavras, acumulo experiências,
Nem sempre me convence a explicação das coisas.
Desejo ver o mundo com meus próprios olhos.
Desejo aproveitar melhor os anos que passam por mim. 


Fonte:
Margarete Solange.
Inventor de Poesia 
Queima-bucha,
2010, p 36

Questões de Lógica Infantil

poesia de Margarete Solange
Se o macaco-prego
Quer uma linda namorada,
Qual das duas é melhor:
Macaca-prega ou
Macaca-pregueada?.
Dona Grila
Teve seis grilos,
Todos seis eram grilados.
Um grilo bateu as botas
E três ficaram curados.
Quantos grilos estão grilados?
Se a galinha dos ovos de ouro
Tiver vários filhotinhos,
Eles serão pintos de ouro
Ou galinhos douradinhos?
.
Se o casal de cágados tem
Um montão de filhotinhos,
Eles são filhotes-cágados
Ou filhotes cagadinhos?
.
O boi búfalo
Quer uma búfala
Com quem possa se casar,
Quando nascerem os filhos
Como eles vão se chamar?
.
Fonte: Margarete Solange.
Inventor de Poesia Infantil: 
Fantoches e Poesia. 
Queima Bucha, 2010.
Ilustrações de Jorge Davi

Minhas Primeiras Leituras


Crônica de Margarete Solange


Sempre fui apaixonada por leitura. Nem lembro como essa paixão começou. Quando aprendi a ler, eu ficava bem perto do meu pai enquanto ele dirigia para que me ouvisse ler os letreiros que surgiam em nosso trajeto. Ele ficava encantado porque eu sabia ler. E porque ele ficava encantado, eu lia tudo o que via pela frente para receber elogios.

Como éramos muitos filhos (nove), estudamos em escolas públicas, e meu pai não podia comprar livros. Na vizinhança, havia uma menina, colega de brincadeiras, que tinha em sua sala uma estante cheia de livros. Eram os clássicos da literatura infantil, uma riqueza! Eu me sentava em frente à estante e ficava olhando os livros para sondar o ambiente e saber se era permitido pegá-los ou não. Estudava as expressões dos rostos das irmãs mais velhas e da mãe da menina. Se não fizessem cara sisuda, era sinal de que eu poderia pegar os livrinhos para ler. Poder lê-los trazia-me uma alegria infinda!
Eu era tímida ou acanhada demais para ter coragem de pedir permissão aos adultos para fazer qualquer coisa que fosse. Esse medo de me expor e enfrentar pessoas trago até hoje. Procedi dessa forma por muitas e muitas manhãs, mas nenhum adulto daquela família colocou obstáculos para que eu lesse os belos e bem ilustrados livrinhos. E assim, li muitos livros, até mesmo “A Dama das Camélias”, de Alexandre Dumas, embora ainda não tivesse idade para entender bem o enredo dessa história. Para não desmerecer a confiança que tinha conquistado, eu segurava os livros com muito zelo, enquanto os lia ou folheava. Esses momentos de leitura eram ricos para mim e, por isso, ainda guardo na memória todo o ambiente que me cercava enquanto eu lia ou relia meu grande tesouro, sentadinha no chão da sala em frente à estante de meus cordiais vizinhos.
Lembro-me também de que iniciei a leitura lúdica nos quadrinhos infantis. Eu ainda não compreendia as palavras, mas entendia as histórias, lendo as gravuras. Vez por outra, meus irmãos apareciam com um gibizinho trocado ou emprestado de alguém. Às vezes, recusavam-se a me emprestar; então eu tinha que ler escondidinha, correndo grandes riscos de ser flagrada. Isso era uma aventura muito grande porque eu era medrosa e não gostava me meter em intrigas. Quando o flagra acontecia, a confusão era tremenda. Guardo com carinho as lembranças de minhas primeiras leituras. Muitos livros infantis não tive o privilégio de ler durante a infância, mas jamais deixei de ler livros infantis porque deixei de ser criança. “O Pequeno Príncipe”, li na adolescência, um amigo me emprestou e “Pollyana”, na fase adulta, visto que duas amigas insistiram para que eu lesse. Adorei! Entre tantos livros lidos na infância, cito dois, como sendo inesquecíveis: “O Patinho Feio”, de Hans Andersen, e “A Ilha perdida”, de Maria José Dupré.




Crônica: 
Minhas Primeiras Leituras,
 Fonte: Margarete Solange.
O Silêncio das Lembranças.
2011, p. 205-206
Queima-Bucha, 2011.
Ilustração de Jorge Davi.


Trecho de Obras


Para onde vai a criança que fomos um dia? 
Por acaso se perde no tempo?... morre?... se  vai?... – Não. Está dentro de nós, até o fim de nossos dias.

Margarete Solange 
Do livro O Silêncio das Lembranças

Queima-Bucha, 2011,p.84..
Ilustração: Jorge Davi

Dois Lados

poesia de Margarete Solange

Nenhum ser humano é perfeito para ser considerado tão somente bom. Assim todos nós temos dois lados. Com os amigos o bom e o belo tende a prevalecer. Os amigos nos fazem melhor, melhoramos nossos amigos. Na convivência mostramos o lado que gostaríamos de não ter.


Denunciamos nossas imperfeições. Quando nos aproximamos, percebemos que os outros não são perfeitos também, o dia a dia que se derrama desastrado sobre nós modifica nossa face de bondade e de beleza. Somos divinos quando amamos e perdoamos, Somos humanos quando reconhecemos nossa grande capacidade de errar



Fotografia de Margleice Pimenta
Fonte: 
Margarete Solange.
Inventor de Poesia: 
 Queima-bucha, 
2010,  p 143.

Na Vida e na Morte

conto de Margarete Solange
Todos têm ciência de que velório é um ambiente sério. Aliás, seriíssimo. A família, tremendamente abalada, fica assim como quem sonha. É de cortar o coração quando os vemos contemplando, incrédulos, o corpo inerte de um ente querido. Até quem não é da família se emociona, e chora. Alguns até exageram na hora de mostrar compaixão. Sim, porque, às vezes, nem conhecem o morto; mesmo assim, choram copiosamente e, às vezes, até passam mal.
Bartolo tinha sessenta anos quando morreu. Possuía um coração generoso. Adorava estar entre os amigos, divertindo-se, contando e ouvindo piadas. Rir é um excelente remédio, dizia ele, para qualquer tipo de doença, e em especial para evitar a depressão. Era repentista dos bons. Gostava de festas e evitava se apresentar em enterros. Dizem que era porque temia não saber se comportar. Era do tipo que falava alto e gargalhava à toa.
Não o conheci pessoalmente, porém sabia muito sobre ele, porque Bárbara, minha amiga, tratava de me contar tudo que o velhote engraçado aprontava. Dizia-me que o tal Bartolo era incrível. Fazia caras engraçadíssimas e dava risadas extravagantes, daquelas que ficam ecoando nos ouvidos por um longo tempo. As pessoas riam só de ouvir-lhe as gargalhadas.
Alguns o achavam muito parecido com o personagem Frankenstein, por causa do rosto completamente marcado pelas cicatrizes que adquiriu num acidente do qual foi vítima quando era ainda jovem. Ele, com muito senso de humor, tirava proveito de sua feiura: ser parecido com Frankenstein era, para ele, uma grande honra.
Desejei muito conhecê-lo. Eu e Bárbara fazíamos planos para irmos juntas passar um final de semana na casa de praia de Bartolo. Ela já tinha ido várias vezes, porém, para mim, as oportunidades foram passando, até que, por fim, minha amiga trouxe-me a triste notícia de que ele havia falecido.
Era uma segunda-feira. Tínhamos combinado de nos encontrar na biblioteca às sete da noite. Estava em nosso cantinho favorito, que era em uma mesa que ficava junto da janela de vidro, de onde podíamos contemplar algumas árvores lá fora. Essa visão dava-nos uma sensação de paz e tranquilidade.
Quando cheguei ao nosso cantinho, percebi que já estava ocupado por um devorador de livros. Pedi licença e sentei-me. Pensei comigo mesma: “Se o ‘intelectual’ se sentir incomodado, então, que se retire.”
Algum tempo depois, Bárbara surge, vindo em minha direção. Sentou-se já se segurando para não rir. Tinha que se comportar decentemente, afinal, além de estarmos numa biblioteca, tínhamos companhia em nossa mesinha.
– Quem é esse ocludão? – perguntou-me baixinho, referindo-se ao rapaz que lia sentado do outro lado da mesa. Era míope, coitado! Por isso usava uns óculos meio grandes de lentes bem grossas.
– Não sei. Já estava aí quando cheguei.
– Tenho uma pra te contar... – continuou falando baixinho.
– Então conta logo...                                      
– Quando a gente sair daqui eu conto... Aqui não dá, senão vou rir... Quase morri de rir ontem à noite... Lembra de Bartolo?
– Bartolo?
– Frank, o repentista...
– Sim.
– Morreu! – desatou a rir, e eu também. O cara que dividia a mesa conosco levantou o livro de maneira que não pudéssemos ver seu rosto.
– Morreu de quê?
– Foi um enfarto fulminante... – não conseguia estancar o riso. – Depois eu conto – tapou a boca com uma das mãos.
Olhei para o rapaz à nossa frente. Ele ainda escondia o rosto atrás do livrão que tentava ler. Voltei-me para Bárbara, que estava vermelha de tanto rir. Achei que se tratava de mais uma de suas gracinhas, e estava ansiosa para saber o que tinha para me contar.
– Vai. Conta logo essa sua piadinha.
– Não é piada não... Quando lhe contar, você vai entender por que estou rindo.
– Então conta logo... – sussurrei.
– Aqui não, senão vai atrapalhar o rapaz que está estudando... – disse elevando a voz com o propósito de chamar a atenção do “ocludão".
– Por mim, tudo bem – apressou-se em falar o estudante – estou somente preenchendo o tempo, não tenho mais aula... Moro no interior e meu ônibus só sai às dez e vinte.
– Então tá. Vou tentar falar baixinho... Que curso você faz?
– Ciência da Computação. E vocês?
– Direito... Dá pra acreditar? – nem esperou resposta, voltou-se em minha direção e começou a falar.
Rapidamente esqueceu-se de que prometera falar baixo e prosseguiu contando-me detalhadamente tudo que viu e ouviu durante o velório de Bartolo.
Logo que recebeu a notícia, ficou tremendamente abalada. Queria chorar, mas não conseguia. O pranto estava preso, e isso lhe fazia um mal terrível.
Eram oito horas da noite do domingo quando lhe disseram que o corpo havia chegado. Saiu de casa levando a sobrinha de quatorze anos em sua companhia. Precisava ver para poder crer que Bartolo realmente havia morrido. Era inacreditável, afinal, ele nunca se queixava de doença alguma.
Era difícil imaginar Bartolo bem comportado, sem fazer nenhuma palhaçada. Ele jamais ficava quieto. Até dormindo era espalhafatoso: dava pernadas, falava, roncava alto e fazia outras coisas mais. Aquelas coisas que as mulheres não comentam para não perder a elegância.
Bárbara tinha esperanças de que tudo não passava de um terrível engano.
O velório aconteceu na própria residência de Bartolo. Não se sabe ao certo o motivo, mas dizem que a viúva não permitiu, de modo algum, que levassem o corpo para ser velado em outro lugar.
O pátio em volta da casa estava cheio de pessoas. Bartolo era muito querido, tinha muitos amigos. Bárbara acenou para alguns conhecidos e prosseguiu em direção à entrada da residência. A sala principal, grande e espaçosa, tornara-se pequena para abrigar a multidão que queria chegar perto do morto.
Vendo que havia muita gente em volta do esquife, a sobrinha de Bárbara desistiu de entrar e acomodou-se na varanda. Minha amiga, com paciência exemplar, conseguiu chegar perto do defunto. Disse que Bartolo nem parecia estar morto, tampouco dormindo. Parecia um ator representando numa péssima atuação. Os olhos estavam entreabertos, ao passo que os lábios ameaçavam rir a qualquer momento.
Repentinamente, surgiram rumores de que o morto poderia estar vivo. Alguém disse que o viu respirar. Uma senhora comentou baixinho que o sorriso se abrira um pouco mais. Os familiares recusavam-se a ouvir esse tipo de comentário, não queriam alimentar falsas esperanças. Certamente gostariam que o querido Bartolo estivesse vivo, porém, embora o socorro tivesse sido imediato, os médicos nada puderam fazer por ele. O enfarto fora fulminante. Tinham que se conformar com aquela fatalidade.
Minha amiga pôs-se a observá-lo com cuidado. Queria conferir, por si mesma, se aqueles rumores tinham algum fundamento. Sentiu-se na obrigação de salvar Bartolo, caso ainda houvesse alguma esperança. Vez por outra, lembrava-se das piadas que ele contava e, então, segurava-se para não dar risadas. Se olhasse para a cara dele, então, aí era que a vontade de rir aumentava. Colocava a mão sobre a boca e fingia chorar. Não chorava de verdade, porque não conseguia. Essa tensão estava provocando um terrível cansaço nas pernas e uma tremenda dor de cabeça.
Ela corria os olhos pelo recinto, alguns cochichavam. As poucas pessoas que choravam cobriam o rosto com um lenço ou com as mãos. Isso fazia Bárbara suspeitar que estavam lembrando das piadas de Bartolo e fingiam chorar para abafar o riso.
Fazia muito calor por causa da multidão e das velas que queimavam em derredor do defunto.
Deveriam ser umas dez ou dez e meia quando surgiu na sala uma moça que, segundo Bárbara, deveria ter uns vinte e quatro anos. Estava elegantemente vestida de preto e era um tipo bastante atraente. Os olhos denunciavam que já havia chorado bastante. Todos os olhares se dirigiram para ela. Imaginando ser alguém da família, as pessoas recuaram, abrindo o caminho para que ela pudesse se aproximar do esquife. Logo que pôs os olhos sobre o morto, deu um soluço sentido, e tombou no chão.
Um rapaz que correu para acudi-la derrubou a tampa do caixão, e o barulho das duas quedas causou um grande rebuliço. Minha amiga Bárbara, para não ser pisoteada por aqueles que desajeitadamente queriam sair da sala, esquivou-se na parede e, com isso, pressionou o interruptor, fazendo as luzes se apagarem.
A confusão foi geral. Do lado de fora alguém gritou:
– O morto ressuscitou! O morto ressuscitou!
Quem estava dentro queria sair por medo do escuro, quem estava do lado de fora queria entrar para ver Bartolo ressurreto.
Uma voz feminina gritou:
– Rápido, gente, tira ele do caixão para ele não ficar traumatizado...
A sobrinha de Bárbara disse que uma senhora, que não conseguia entrar por causa dos que se acotovelavam tentando sair, perguntava com voz bastante emocionada:
– Ele está sentado? Ele está sentado? Como é que ele está?
Ao seu lado a filha, puxando-lhe o braço, repetia:
– Foi pilepsia, mainha, foi pilepsia.
Bárbara teve um ataque de riso. Começou a gargalhar bem alto, e isso fez o povo ficar mais apavorado ainda. Alguém saiu da sala gritando:
– A moça que desmaiou ficou louca e está rindo sem parar.
Um dos presentes, percebendo que somente a sala do velório estava escura, alcançou o interruptor e acendeu as luzes. Minha amiga, então, teve que segurar o riso e fingir que chorava.
A confusão continuou. Crianças choravam, pessoas corriam, objetos caíam.
Foi aí que uma juíza aposentada, amiga da família, resolveu tentar pôr ordem no recinto. Bateu as mãos para chamar a atenção do povo. O tumulto cessou imediatamente.
– Calma pessoal. Respeitem o morto!
Quando viu que o povo a ouvia com atenção, empolgou-se e fez a maior pose de político que discursa para seus eleitores. A dentadura frouxa da velhota ameaçou cair, mesmo assim continuou falando. A dentadura despencou. Com gesto rápido, a juíza estendeu a mão para agarrá-la, antes que caísse dentro do caixão de Bartolo.
A crise de riso voltou. Então, Bárbara simulou um tropeção e apagou novamente as luzes para que as pessoas não percebessem que era ela a dona das risadas extravagantes.  Assim que o tumulto voltou, acendeu a luz e correu em direção ao banheiro. Riu até que o riso deu lugar ao pranto. Ficou com a barriga completamente dolorida de tanto rir.
A juíza conseguiu novamente acalmar a multidão. Se a dentadura tentou escapar novamente de sua boca, Bárbara não soube dizer, porque estava trancada no banheiro, chorando após uma tremenda crise de riso.
Um longo tempo depois, saiu do seu esconderijo e seguiu em direção à cozinha, a fim de beber um pouco de água. Em cada canto da casa havia grupinhos cochichando, até sobre o que não tinha acontecido.
Todos queriam saber quem era a bela moça que havia desmaiado ao contemplar o rosto do defunto. Uns aos outros perguntavam, porém nenhum dos presentes a conhecia. Surgiram muitos palpites acerca de sua identidade. Todavia, a certeza ninguém jamais terá, visto que, quando tudo se aquietou, a jovem misteriosa e o rapaz que a socorreu tinham desaparecido.
Por causa dessa tão grande confusão, a família ficou ainda mais fragilizada.
– Quem já se viu bagunçarem um velório dessa maneira? – desabafou a viúva entre soluços.
De volta à sala onde o morto jazia, deu uma paradinha em frente ao esquife para dar o último adeus ao amigo. Ele estava tranquilo, com o mesmo sorriso debochado nos lábios. Parecia o mesmo Bartolo de sempre. Bárbara esboçou um leve sorriso e acenou discretamente para ele, como se quisesse dizer “Tchau, Frank, seu velório foi muito divertido”...
Pois é, esta é a história que minha amiga me contou. Depois disso, ela resolveu levar muito a sério a filosofia de vida defendida por Bartolo. Acostumou-se a dizer que rir é um excelente remédio, e transforma tudo em comédia.
Semana passada, estávamos novamente na biblioteca. Enquanto eu terminava uma pesquisa, ela, muito concentrada, lia um jornal. De repente, encerrou a leitura e dirigiu-me a palavra com cara de surpresa e pesar:
– Não dá pra acreditar... Estou chocada... João Patrício morreu... que coisa horrível... seu fusquinha foi completamente esmagado por uma carreta...
– João Patrício?... Quem é esse tal de João Patrício? – indaguei curiosa.
– Sei lá. Só sei que estou chocada com a morte dele. Por quê? Não posso? – deixou escapar uma sonora gargalhada.
 Pretendia dar-lhe uma bronca, não consegui. Só de olhar para a cara dela eu desatava a rir.
As pessoas que estavam na biblioteca nos olhavam com ar de reprovação, o que aumentava ainda mais nossa vontade de rir. Tentando nos comportar, evitávamos olhar uma para outra. Nesse instante, surge Garibalde, o “ocludão, aquele que dividiu conosco a mesa no dia em que Bárbara me contou sobre a morte de Bartolo. Pois é, fizemos amizade com ele e descobrimos, naquela mesma noite, que ele também é metido a engraçadinho. Aproximou-se de nossa mesa e, com cara de comediante, perguntou: 
– E aí, estão rindo por quê, morreu mais alguém?

Fonte: Margarete Solange.
Ninguém é Feliz sem Problemas.
Fundação Vingt-un Rosado, 
2009, p. 13-19




Obra premiada no concurso literário escritor
Norte-riograndense: Projeto Rota Batida III.
Fundação Mossoroense

Filhos da Pobreza


conto de Margarete Solange

1984. Estava indo fazer uma reportagem numa cidadezinha chamada João Câmara, mais conhecida pelos moradores do lugar como “Baixa Verde”. Eu iria acompanhada de um fotógrafo que era novato em nosso jornal. Além de atrapalhado, o cara tinha o costume de não ser pontual. Assim sendo, para evitar esperá-lo além do previsto, eu costumava ir pegá-lo na casa dele. Parei o carro em frente ao prédio e buzinei insistentemente, dando demonstração de pressa. Algum tempo depois, o bonitão surgiu com a mãe a tiracolo, ajeitando o filhinho aqui e ali, me fazendo lembrar uma gata que lambe os seus filhotes.
– Vamos, Léo! – gritei para apressá-lo.
Quando o meu companheiro de trabalho preparava-se para entrar no carro, surgiu ao seu lado uma mocinha meio acanhada. Ela usava um vestido de tecido barato e muito florido, o que me fez imediatamente concluir a sua origem.
Trocou umas poucas palavras com Léo e entregou-lhe uma certa quantia em dinheiro, que hoje deveria corresponder a dez reais.
– Quê que ela queria, Léo? – indaguei curiosa.
– Pediu que eu entregasse esse dinheiro à mãe dela... lá no interior para onde estamos indo... Ela é de lá, daquelas bandas.
Mudamos de assunto, conversamos, rimos, cantamos, até que, por fim, chegamos à cidadezinha. Fizemos nossa reportagem e, quando achei que só nos restava pegar a estrada de volta, Léo me lembrou de que precisava entregar o dinheiro que a mocinha enviara para seus pais. Perguntou na feira por seu Zé Felinto, marido de dona Nova e pai de Marlene, e ficou sabendo que eles moravam um pouco mais afastado da cidade, num lugar chamado “Arisco do Sotero”.
– A fia casada dele mora naquela casa róseo... – anunciou o vendedor, que foi interrompido pela mulher do lado, para dizer que nem entregasse a encomenda porque ela não falava com o pai.
Léo perguntou se o lugar era distante e, como disseram que não, ele decidiu que iríamos até lá. Queria ter certeza de que a encomenda chegaria com segurança ao seu destino.
Eu estava a ponto de lançar-lhe, em rosto, todo o meu desagrado. Achava que tinha motivos de sobra para fazê-lo; afinal de contas, já havia aguardado, pacientemente, dentro do carro, enquanto Léo desfilava seu charme pela feira, comprando as novidades do lugar para levar para sua querida mamãezinha. Era pamonha, feijão verde, beiju, grude e nem lembro mais o quê, embalados carinhosamente para viagem.
Decidi não reclamar a decisão do meu companheiro. Com minhas implicâncias, eu iria, tão somente, impedir aquele filho exemplar de realizar mais uma de suas boas ações. Mas não posso deixar de confessar que esse seu jeito bondoso e mimado de ser era motivo para eu fazer chacotas com ele, principalmente nos momentos em que estávamos reunidos com os outros colegas na redação do jornal onde trabalhamos.
Depois de penarmos bastante procurando a morada do tal Zé Felinto, nos aproximamos da casa de taipa indicada por um homem que seguia com sua enxada sobre o ombro. Ao ouvir o ruído do carro, todos da casa saíram à porta, como que aguardando nossa chegada. Os filhos menores agarravam-se à saia da mãe, de modo que ficavam quase que totalmente escondidos por trás dela.
Descemos do carro. Leonardo apresentou-se dizendo que vinha da parte de Marlene, a moça que trabalhava num dos apartamentos do condomínio onde morava. Ao pronunciar esse nome, a mulher pareceu engasgar-se com as palavras que queria pronunciar. Com voz embolada e emocionada, ela disse:
– Diga a ela que fique por lá.
         Eu, curiosa de nascença e acostumada a fazer perguntas, graças à minha profissão, sentei-me num tamborete vazio próximo à porta e quis saber o porquê desse recado. Aqui e ali precisava pedir que a mulher repetisse o que dizia, porque falava rápido, olhando para o chão da casa, que era da mesma areia que havia no pátio em derredor.
         A mulher, de rosto sofrido, cuja idade não sei nem precisar, sempre com os pequenos escondendo-se atrás dela, disse-nos que não queria que a filha voltasse, porque a coisa estava cada dia pior. Arranjar comida já estava difícil até para os que ficaram. Se Marlene voltasse, seria uma boca a mais para dar de comer. Os filhos homens, que ficavam rapazes, fugiam de casa por causa da brutalidade do pai. Faziam falta no roçado para plantar e colher, mas era melhor assim. Largavam-se no meio do mundo, para tentar a sorte noutro lugar.
         Quando ela disse que nem sempre tinham o que comer, eu perguntei o que fazia com aquele monte de filhos pequenos. Nem lembro quantos, sei que eram muitos, creio que um filho por ano era a sua média. E quando comentei sobre isso, ela sorriu, e disse-me com voz cantada, penso que se orgulhando do fato:
         – Fora cinco qui morreru... e os mai véio qui foru imbora... tudo era dizenovi.
Queria que trouxéssemos uma garotinha de uns catorze ou quinze anos para que, como Marlene, pudesse arranjar um emprego em casa de família. Mas a mocinha, embora fosse uma das menos assustadas, recusou-se a nos acompanhar. Cada vez que a mãe falava no assunto e insistia para que nos acompanhasse, ela, quando não ficava calada, sacudia a cabeça em sinal de negação.
         Eu fiz muitas perguntas e dona Nova me respondeu, de bom grado, tudo o que quis saber. As meninas mais velhas vez por outra nos encaravam admiradas de nossas roupas e tênis; os meninos não tiravam os olhos do boné de Leonardo; mas, se fôssemos nós que resolvêssemos fitá-los com insistência, eles baixavam a cabeça e escondiam-se, uns atrás dos outros, encabulados.
         Respondendo à minha pergunta, dona Nova disse que, nos dias em que não têm nada para comer, todos se sentam no chão da sala e ficam, assim, sentados sobre a areia o dia inteiro, sem fazer nada.
         – Ficam conversando? – perguntei interrompendo sua fala, ao que ela me respondeu:
         – Nóis num tem o qui cunversá não, moça... nóis fica caladu mermo, isquecenu a fome...
         Olhei para Léo neste momento e senti que ele reprimia o choro. Eu tentava fazer o mesmo, quis até ficar calada para a voz não me trair; contudo, como era minha vez de falar, ficar calada seria pior. Decidi, então, continuar a conversa, mesmo com voz trôpega.
         – E as crianças?
         – Fica queta junto de nóis, tá tudo acostumado já, a fome aqui num é nuvidade não...
– Sim!... Sua filha Marlene mandou umas coisas para senhora... – disse Léo saindo apressado em direção ao carro.
         A meninada o seguiu curiosa, todavia mantendo sempre uma distância defensiva. Pareciam uns bichinhos assustados, pés descalços, cabelos aloirados em desalinho e marcas de feridas nas pernas.
         O meu companheiro retornou com a sacola cheia das novidades que comprara para sua mãe e a entregou à mulher. Achei o seu gesto louvável. Em seguida, tirou do bolso uma parte do seu salário e lhe entregou também, dizendo que Marlene tinha enviado. Dona Nova recebeu de cabeça baixa e proferiu uma bênção para nós e para sua filha.
Neste instante, os filhos, sentindo o cheiro de comida, começaram a puxar a saia da mãe, dizendo que estavam com fome. Eu aproveitei o alvoroço para, discretamente, espalhar, com as pontas dos dedos, as lágrimas teimosas que escapavam de meus olhos.
         A mãe, nenhuma resposta dava aos filhos que lhe puxavam a saia e repetiam que estavam com fome. Ela fazia gestos de reprovação e voltava-se para nós, esperando que fizéssemos mais alguma pergunta. Se não introduzíssemos a conversa, ela nada dizia.
         Sem nem ao menos contar o dinheiro que Leonardo lhe entregara, mandou que a menina mais velha o colocasse embaixo de um rádio grande e antigo que havia sobre uma mesinha no canto da sala, único móvel que havia além dos poucos tamboretes. Percebi que faltavam uns botões no rádio e, por curiosidade, perguntei se ele conseguia pegar as estações de minha cidade. Queria tão somente confirmar as minhas suspeitas: o velho rádio era somente uma peça de enfeite, um dos poucos pertences daqueles filhos da pobreza.
         Decidimos partir. Leonardo assumiu o volante, e eu, ao seu lado, volvia-me de vez em quando para olhar a trás, a fim de contemplar a mulher e os seus filhos em frente à baixa casinha de taipa. Até onde pude vê-los, estavam lá parados, junto à porta, olhando em nossa direção.
         Os rostos deles ficaram gravados em minha mente, ao longo dos anos: olhos que não choravam, lábios que não sorriam. 

Fonte: Margarete Solange.
Ninguém é Feliz sem Problemas.
Fundação Vingt-un Rosado, 
2009, p. 38-42.




Obra premiada no concurso literário
escritor Norte-riograndense: Projeto 
Rota Batida III. Fundação Mossoroense