conto de Margarete Solange
Todos têm ciência de que
velório é um ambiente sério. Aliás, seriíssimo. A família, tremendamente
abalada, fica assim como quem sonha. É de cortar o coração quando os vemos contemplando,
incrédulos, o corpo inerte de um ente querido. Até quem não é da família se
emociona, e chora. Alguns até exageram na hora de mostrar compaixão. Sim, porque,
às vezes, nem conhecem o morto; mesmo assim, choram copiosamente e, às vezes,
até passam mal.
Bartolo
tinha sessenta anos quando morreu. Possuía um coração generoso. Adorava estar
entre os amigos, divertindo-se, contando e ouvindo piadas. Rir é um excelente remédio,
dizia ele, para qualquer tipo de doença, e em especial para evitar a depressão.
Era repentista dos bons. Gostava de festas e evitava se apresentar em enterros. Dizem
que era porque temia não saber se comportar. Era do tipo que falava alto e
gargalhava à toa.
Não o
conheci pessoalmente, porém sabia muito sobre ele, porque Bárbara, minha amiga,
tratava de me contar tudo que o velhote engraçado aprontava. Dizia-me que o tal
Bartolo era incrível. Fazia caras engraçadíssimas e dava risadas extravagantes,
daquelas que ficam ecoando nos ouvidos por um longo tempo. As pessoas riam só
de ouvir-lhe as gargalhadas.
Alguns
o achavam muito parecido com o personagem Frankenstein, por causa do rosto
completamente marcado pelas cicatrizes que adquiriu num acidente do qual foi
vítima quando era ainda jovem. Ele, com muito senso de humor, tirava proveito
de sua feiura: ser parecido com Frankenstein era, para ele, uma grande honra.
Desejei
muito conhecê-lo. Eu e Bárbara fazíamos planos para irmos juntas passar um
final de semana na casa de praia de Bartolo. Ela já tinha ido várias vezes,
porém, para mim, as oportunidades foram passando, até que, por fim, minha amiga
trouxe-me a triste notícia de que ele havia falecido.
Era uma
segunda-feira. Tínhamos combinado de nos encontrar na biblioteca às sete da
noite. Estava em nosso cantinho favorito, que era em uma mesa que ficava junto
da janela de vidro, de onde podíamos contemplar algumas árvores lá fora. Essa
visão dava-nos uma sensação de paz e tranquilidade.
Quando
cheguei ao nosso cantinho, percebi que já estava ocupado por um devorador de
livros. Pedi licença e sentei-me. Pensei comigo mesma: “Se o ‘intelectual’ se
sentir incomodado, então, que se retire.”
Algum
tempo depois, Bárbara surge, vindo em minha direção. Sentou-se já se segurando
para não rir. Tinha que se comportar decentemente, afinal, além de estarmos
numa biblioteca, tínhamos companhia em nossa mesinha.
– Quem
é esse ocludão? – perguntou-me baixinho,
referindo-se ao rapaz que lia sentado do outro lado da mesa. Era míope,
coitado! Por isso usava uns óculos meio grandes de lentes bem grossas.
– Não
sei. Já estava aí quando cheguei.
– Tenho
uma pra te contar... – continuou falando baixinho.
– Então
conta logo...
–
Quando a gente sair daqui eu conto... Aqui não dá, senão vou rir... Quase morri
de rir ontem à noite... Lembra de Bartolo?
–
Bartolo?
–
Frank, o repentista...
– Sim.
–
Morreu! – desatou a rir, e eu também. O cara que dividia a mesa conosco
levantou o livro de maneira que não pudéssemos ver seu rosto.
–
Morreu de quê?
– Foi
um enfarto fulminante... – não conseguia estancar o riso. – Depois eu conto –
tapou a boca com uma das mãos.
Olhei
para o rapaz à nossa frente. Ele ainda escondia o rosto atrás do livrão que
tentava ler. Voltei-me para Bárbara, que estava vermelha de tanto rir. Achei
que se tratava de mais uma de suas gracinhas, e estava ansiosa para saber o que
tinha para me contar.
– Vai.
Conta logo essa sua piadinha.
– Não é
piada não... Quando lhe contar, você vai entender por que estou rindo.
– Então
conta logo... – sussurrei.
– Aqui
não, senão vai atrapalhar o rapaz que está estudando... – disse elevando a voz
com o propósito de chamar a atenção do “ocludão".
– Por
mim, tudo bem – apressou-se em falar o estudante – estou somente preenchendo o
tempo, não tenho mais aula... Moro no interior e meu ônibus só sai às dez e
vinte.
– Então
tá. Vou tentar falar baixinho... Que curso você faz?
–
Ciência da Computação. E vocês?
–
Direito... Dá pra acreditar? – nem esperou resposta, voltou-se em minha direção
e começou a falar.
Rapidamente
esqueceu-se de que prometera falar baixo e prosseguiu contando-me detalhadamente
tudo que viu e ouviu durante o velório de Bartolo.
Logo
que recebeu a notícia, ficou tremendamente abalada. Queria chorar, mas não
conseguia. O pranto estava preso, e isso lhe fazia um mal terrível.
Eram
oito horas da noite do domingo quando lhe disseram que o corpo havia chegado.
Saiu de casa levando a sobrinha de quatorze anos em sua companhia. Precisava
ver para poder crer que Bartolo realmente havia morrido. Era inacreditável, afinal,
ele nunca se queixava de doença alguma.
Era
difícil imaginar Bartolo bem comportado, sem fazer nenhuma palhaçada. Ele
jamais ficava quieto. Até dormindo era espalhafatoso: dava pernadas, falava,
roncava alto e fazia outras coisas mais. Aquelas coisas que as mulheres não
comentam para não perder a elegância.
Bárbara
tinha esperanças de que tudo não passava de um terrível engano.
O velório aconteceu na própria residência de Bartolo. Não
se sabe ao certo o motivo, mas dizem que a viúva não permitiu, de modo algum,
que levassem o corpo para ser velado em outro lugar.
O pátio em volta da casa estava cheio de pessoas. Bartolo
era muito querido, tinha muitos amigos. Bárbara acenou para alguns conhecidos e
prosseguiu em direção à entrada da residência. A sala principal, grande e
espaçosa, tornara-se pequena para abrigar a multidão que queria chegar perto do
morto.
Vendo que havia muita gente em volta do esquife, a sobrinha
de Bárbara desistiu de entrar e acomodou-se na varanda. Minha amiga, com paciência
exemplar, conseguiu chegar perto do defunto. Disse que Bartolo nem parecia
estar morto, tampouco dormindo. Parecia um ator representando numa péssima atuação.
Os olhos estavam entreabertos, ao passo que os lábios ameaçavam rir a qualquer
momento.
Repentinamente, surgiram rumores de que o morto poderia
estar vivo. Alguém disse que o viu respirar. Uma senhora comentou baixinho que
o sorriso se abrira um pouco mais. Os familiares recusavam-se a ouvir esse tipo
de comentário, não queriam alimentar falsas esperanças. Certamente gostariam
que o querido Bartolo estivesse vivo, porém, embora o socorro tivesse sido
imediato, os médicos nada puderam fazer por ele. O enfarto fora fulminante. Tinham
que se conformar com aquela fatalidade.
Minha amiga pôs-se a observá-lo com cuidado. Queria
conferir, por si mesma, se aqueles rumores tinham algum fundamento. Sentiu-se
na obrigação de salvar Bartolo, caso ainda houvesse alguma esperança. Vez por
outra, lembrava-se das piadas que ele contava e, então, segurava-se para não
dar risadas. Se olhasse para a cara dele, então, aí era que a vontade de rir aumentava.
Colocava a mão sobre a boca e fingia chorar. Não chorava de verdade, porque não
conseguia. Essa tensão estava provocando um terrível cansaço nas pernas e uma
tremenda dor de cabeça.
Ela corria os olhos pelo recinto, alguns cochichavam. As
poucas pessoas que choravam cobriam o rosto com um lenço ou com as mãos. Isso
fazia Bárbara suspeitar que estavam lembrando das piadas de Bartolo e fingiam
chorar para abafar o riso.
Fazia muito calor por causa da multidão e das velas que
queimavam em derredor do defunto.
Deveriam ser umas dez ou dez e meia quando surgiu na sala
uma moça que, segundo Bárbara, deveria ter uns vinte e quatro anos. Estava
elegantemente vestida de preto e era um tipo bastante atraente. Os olhos
denunciavam que já havia chorado bastante. Todos os olhares se dirigiram para
ela. Imaginando ser alguém da família, as pessoas recuaram, abrindo o caminho
para que ela pudesse se aproximar do esquife. Logo que pôs os olhos sobre o
morto, deu um soluço sentido, e tombou no chão.
Um rapaz que correu para acudi-la derrubou a tampa do
caixão, e o barulho das duas quedas causou um grande rebuliço. Minha amiga
Bárbara, para não ser pisoteada por aqueles que desajeitadamente queriam sair
da sala, esquivou-se na parede e, com isso, pressionou o interruptor, fazendo
as luzes se apagarem.
A confusão foi geral. Do lado de fora alguém gritou:
– O morto ressuscitou! O morto ressuscitou!
Quem estava dentro queria sair por medo do escuro, quem
estava do lado de fora queria entrar para ver Bartolo ressurreto.
Uma voz feminina gritou:
– Rápido, gente, tira ele do caixão para ele não ficar
traumatizado...
A sobrinha de Bárbara disse que uma senhora, que não
conseguia entrar por causa dos que se acotovelavam tentando sair, perguntava
com voz bastante emocionada:
– Ele está sentado? Ele está sentado? Como é que ele está?
Ao seu lado a filha, puxando-lhe o braço, repetia:
– Foi pilepsia,
mainha, foi pilepsia.
Bárbara teve um ataque de riso. Começou a gargalhar bem
alto, e isso fez o povo ficar mais apavorado ainda. Alguém saiu da sala gritando:
– A moça que desmaiou ficou louca e está rindo sem parar.
Um dos presentes, percebendo que somente a sala do velório
estava escura, alcançou o interruptor e acendeu as luzes. Minha amiga, então,
teve que segurar o riso e fingir que chorava.
A confusão continuou. Crianças choravam, pessoas corriam,
objetos caíam.
Foi aí que uma juíza aposentada, amiga da família, resolveu
tentar pôr ordem no recinto. Bateu as mãos para chamar a atenção do povo. O
tumulto cessou imediatamente.
– Calma pessoal. Respeitem o morto!
Quando viu que o povo a ouvia com atenção, empolgou-se e
fez a maior pose de político que discursa para seus eleitores. A dentadura
frouxa da velhota ameaçou cair, mesmo assim continuou falando. A dentadura despencou.
Com gesto rápido, a juíza estendeu a mão para agarrá-la, antes que caísse dentro
do caixão de Bartolo.
A crise de riso voltou. Então, Bárbara simulou um tropeção
e apagou novamente as luzes para que as pessoas não percebessem que era ela a
dona das risadas extravagantes. Assim
que o tumulto voltou, acendeu a luz e correu em direção ao banheiro. Riu até
que o riso deu lugar ao pranto. Ficou com a barriga completamente dolorida de
tanto rir.
A juíza conseguiu novamente acalmar a multidão. Se a
dentadura tentou escapar novamente de sua boca, Bárbara não soube dizer, porque
estava trancada no banheiro, chorando após uma tremenda crise de riso.
Um longo tempo depois, saiu do seu esconderijo e seguiu
em direção à cozinha, a fim de beber um pouco de água. Em cada canto da casa
havia grupinhos cochichando, até sobre o que não tinha acontecido.
Todos queriam saber quem era a bela moça que havia
desmaiado ao contemplar o rosto do defunto. Uns aos outros perguntavam, porém
nenhum dos presentes a conhecia. Surgiram muitos palpites acerca de sua
identidade. Todavia, a certeza ninguém jamais terá, visto que, quando tudo se
aquietou, a jovem misteriosa e o rapaz que a socorreu tinham desaparecido.
Por causa dessa tão grande confusão, a família ficou ainda
mais fragilizada.
– Quem já se viu bagunçarem um velório dessa maneira? –
desabafou a viúva entre soluços.
De volta à sala onde o morto jazia, deu uma paradinha em
frente ao esquife para dar o último adeus ao amigo. Ele estava tranquilo, com o
mesmo sorriso debochado nos lábios. Parecia o mesmo Bartolo de sempre. Bárbara
esboçou um leve sorriso e acenou discretamente para ele, como se quisesse dizer
“Tchau, Frank, seu velório foi muito divertido”...
Pois é, esta é a história que minha amiga me contou. Depois
disso, ela resolveu levar muito a sério a filosofia de vida defendida por
Bartolo. Acostumou-se a dizer que rir é um excelente remédio, e transforma tudo
em comédia.
Semana passada, estávamos novamente na biblioteca.
Enquanto eu terminava uma pesquisa, ela, muito concentrada, lia um jornal. De
repente, encerrou a leitura e dirigiu-me a palavra com cara de surpresa e
pesar:
– Não dá pra acreditar... Estou chocada... João Patrício
morreu... que coisa horrível... seu fusquinha foi completamente esmagado por
uma carreta...
– João Patrício?... Quem é esse tal de João Patrício? – indaguei
curiosa.
– Sei lá. Só sei que estou chocada com a morte dele. Por
quê? Não posso? – deixou escapar uma sonora gargalhada.
Pretendia dar-lhe
uma bronca, não consegui. Só de olhar para a cara dela eu desatava a rir.
As
pessoas que estavam na biblioteca nos olhavam com ar de reprovação, o que
aumentava ainda mais nossa vontade de rir. Tentando nos comportar, evitávamos
olhar uma para outra. Nesse instante, surge Garibalde, o “ocludão, aquele que
dividiu conosco a mesa no dia em
que Bárbara me
contou sobre a morte de Bartolo. Pois é, fizemos amizade com ele e descobrimos,
naquela mesma noite, que ele também é metido a engraçadinho. Aproximou-se de
nossa mesa e, com cara de comediante, perguntou:
– E aí,
estão rindo por quê, morreu mais alguém?
Fonte: Margarete Solange.
Ninguém é Feliz sem Problemas.
Fundação Vingt-un Rosado,
2009, p. 13-19
2009, p. 13-19
Fundação Mossoroense