conto de Margarete Solange
A
linguística, por exemplo, geralmente é antipatizada pelos estudantes. É certo
que ela é complicada, mas e daí? As mulheres também são. Por outro lado, os que
se metem a estudar com afinco essa disciplina defendem que ela é sedutora como
uma mulher que nada tem de fácil, mas deseja ardentemente ser compreendida.
Pois é, quando a gente se apaixona, nada é tão complicado.
A
questão é que, ultimamente, estou com uma grande dúvida entre ser legal ou ser
chato. Mas penso que ser chato é a melhor opção. Penso e justifico.
Ouvi
recentemente um garoto de doze anos muito descontente com sua mãe, e sem
rodeios disse-me o quanto ela era chata, exigente, cansativa, etc. Isso porque
não permitiu que ele jantasse sem tomar banho. Bom, se ele já estava o dia
inteirinho sem tomar banho, e até já cheirava bastante mal, acho que não seria
muito lógico ser legal numa situação como essa. Além do mais, na tarde desse mesmo
dia, o mesmo garoto permitiu a entrada de um bando de coleguinhas na cozinha.
Fizeram a maior bagunça, pegando nos copos e nas garrafas de água com mãos
sujas de terra, de rabugem de cachorro, de sei lá mais o quê. Resultado: levou
uma bronca daquelas que começa com: “Meu filho, eu já não falei pra você
que...”.
Os
filhos detestam esse começo da reclamação. Razão pela qual, nem chegam a ouvir
o final e, talvez por isso, tornam sempre a fazer aquilo que os pais dizem para
não fazer. Pois é, todo e qualquer pai ou mãe que começa o sermão em tom aborrecido,
dizendo esse mesmo blá-blá-blá, vai para o clube dos chatos ou dos cansativos,
o que é uma classificação ainda pior.
Por
outro lado, há pais que classificam os filhos adolescentes como sendo a própria
chatice. Todavia, sobre isso eles não concordam, já que, para os adolescentes,
chatos mesmo são os colegas tímidos que não pensam em namorar. Os mesmos,
que na sala se aula, geralmente sentam nas fileiras da frente, prestam atenção
às explicações e sempre acertam as perguntas que os professores fazem.
Existe
ainda aquela engomadinha já adulta que sabe se comportar em palestra e deseja
ouvir tudo que o palestrante está dizendo. Porém, não consegue, visto que um
grupinho muito mal-comportado fica conversando e rindo o tempo inteiro. Isso,
claro, para depois ficar perguntando a um e a outro o que foi dito de
importante. Nesse caso, a incomodada, depois de já ter pedido silêncio uma
dezena de vezes, resolve se irritar e acaba perdendo a elegância.
Ah,
lembrei-me que existe ainda o chato do vizinho, que se aborrece se porventura
está tentando dormir e a garotada resolve fazer uma farra bem debaixo de sua
janela. Diga-se de passagem que nenhum dos garotos é filho dele, pois ele só
tem filhos adultos, casados e morando noutra cidade. Pois é, esse vizinho,
quando resolve enxotar a criançada, é um terror. Então uma mãe bem legal
comenta com o marido:
– Ah,
velho chato! Pra que se aborrecer com os bichinhos? Eles nem estavam fazendo
nada demais. Pode ir, meu filho, faça bem zuada debaixo da janela do
velho. Se ele reclamar, jogue uma pedra na janela e corra pra casa. Deixe o
resto comigo.
É isso aí, essas mães
legais adoram proteger os filhotes. Compram tudo que eles desejam. Claro, se
não comprarem eles se amuam, esperneiam e caem no chão, tendo o maior chilique
do mundo. Isso quando não fazem greve de fome.
Pais
legais são assim: o desejo de um filho é uma ordem. E ai deles se não obedecerem!
Ai dos filhos? Não. Dos pais. Filhos de pais muito legais geralmente não
obedecem. Manipulam, chantageiam com pressões psicológicas, convencem os pais
de que, se não querem nada com os estudos, a culpa é dos professores, que são
uns chatos.
E são
mesmo. Professor não tolera quem bagunça em classe, principalmente durante a
explicação. Ora, se alguém tem nada a ver se ele tem calo nas cordas vocais, se
ganha pouco e as turmas são superlotadas.
E como
se não bastasse a matéria tediosa, ainda vem com a chatice de dizer que o aluno
deveria valorizar o ensino, para garantir um futuro melhor. Quem é que quer
saber de futuro melhor? O momento é agora! Numa boa! A vida é curta e o legal é
aproveitar essa coisa moderna de ficar com alguém sem
compromisso, fugir da aula para teclar com os amigos ou comparar o
celular para ver quem tem o modelo mais bonito.
Essa
modernidade é uma coisa linda: comprar livros, o jovem não pode nem quer, mas
para adquirir um celular, sempre dá um jeitinho. Para isso, não existe
desemprego nem pobreza.
Então,
o chato do professor de português, só porque pegou uma garota mandando um
torpedo para um colega, resolve dar um exemplo dizendo:
– É,
pessoal, até pra usar o celular tem que saber português. Quem não sabe usar a
língua fica enviando mensagens cheias de erros.
Nesse
instante, um bonitão sarado resolve mostrar seu linguajar pós-moderno.
– Aí,
galera, o professor viajou na maionese. A gente até que mandamos bem o purtuguês,
falou? Agora, se tu acha que a gente não sabemos, quanto mais
a galerinha que tá do outro lado... Eles escrevi
pior do que a gente escrevemos.
A classe inteira achou a
piada muito engraçada, menos o chato do professor. Coitado de seus ouvidos
gramaticais...
Por
outro lado, tem professor que até que é bem legal. Deixa a turma bem à vontade.
Quem quiser colar, que cole, ele não pega no pé de ninguém. O problema é que
não se aprende nada com ele, só quem já sabe. E tem aluno por aí que sabe
muito, é fera em matemática, português, inglês... mas é chato, não dá cola a
ninguém, e geralmente usa óculos. Será que aprender muito faz mal a vista?
Porque se faz, é bom nem aprender, pois usar óculos não é nada legal.
Por
falar em óculos, sei de uma garota que fazia questão de ser legal. É difícil
ser legal. Usar óculos é bem mais fácil, não há nem comparação.
Mas
como ia dizendo, essa garota míope certa vez foi convidada para passar as
férias na casa de praia de uns amigos e, como era muito branquinha, comprou um
bloqueador solar recomendado pelo dermatologista, e que era bastante caro. No
primeiro dia, tudo tranquilo. No segundo, aquele povo prestativo, que tudo que
tem é de todos, começa a oferecer coisas e favores, cheios de “boas intenções”.
Sem contar que esses legais falam pelos cotovelos... adoram ser extrovertidos,
e assim se extrovertem até onde não os cabe.
–
Nossa! Você usa esse bloqueador? Eu também. Ele é tudo de bom. Comprou onde?
Quanto foi? Caramba! Como foi barato. Lá onde eu compro é quase o dobro desse
preço. Não comprei porque tava em falta... Posso pegar um pouquinho?
Mesmo desagradando a si mesma, a convidada concorda.
–
Claro, fique à vontade...
A
espalhafatosa, então, muito à vontade deixa até de usar o que é seu para
aproveitar o alheio.
Nos
últimos dias de férias, a gentil não podia nem mais se expor ao sol porque não
tinha uma gotícula sequer do seu rico bloqueador. A outra, por sua vez, resolve
se desculpar, muito compadecida:
–
Mulher... Acabaram seu protetor, tadinha... Mas deixa estar que amanhã eu vou
dar uma volta por aí e vejo se encontro um bloqueador igual ao seu.
Logo
após, segue-se aquela sessão de “não se preocupe”, “não precisa”, “faço
questão”, “imagina” etc. Porém, o que todo mundo sabe é que essa troca de gentilezas
sempre favorece os mais espertinhos. E, ao que parece, as pessoas legais são
muito espertinhas...
É
terrível essa coisa de ser branco demais! Bom mesmo é ter pele morena,
bronzeada, uma cor mais escurinha. Mas, aí vem o racismo. As pessoas adoram se
divertir fazendo piadinhas com o negro. Não fazem por mal, não. É só de
brincadeirinha. É superlegal essa coisa de ridicularizar pessoas – gordo,
baixinho, careca, narigudo, vesgo, homossexual, solteirona encalhada – desde
que a pessoa em questão não seja você, nem alguém da sua família, nem alguém de
quem você gosta muito. Porque se for, aí não tem graça nenhuma. Qualquer um que
resolva afrontá-lo com piadinhas de mau gosto – pode ser seu melhor amigo –
deixa de ser legal imediatamente.
E agora, ser ou não ser? Sinceramente, não quero ninguém
por aí me chamando de legal, não. É chato demais ser legal. Quem é legal, não
pode se irritar nunca, mesmo quando meio mundo resolve saturar a sua paciência,
isso sabendo que você não está num bom dia. Experimente dizer em casa ou no seu
local de trabalho que está estressado, irritado ou com dor de cabeça, e peça
para lhe deixarem em
paz. Geralmente não deixam. Você tenta outra vez. Se não deixam,
você, então, perde a paciência e o título de legal que levou anos para conquistar.
Decididamente, não é fácil agradar. É mais simples ser chato. Já reparou que as
pessoas falam menos mal do chato? Sim, porque ele tem o direito de dizer um não
se alguém lhe pedir um CD emprestado. E quando o que pediu o empréstimo vai
comentar com outro chato, esse trata de lhe refrescar a memória dizendo:
– Também, todas as vezes que você pede um CD emprestado
só falta não devolver e quando devolve o bicho tá todo arranhado...
Felizmente, os chatos se entendem. Um não pede nada
emprestado ao outro, isso para dar o exemplo e porque entende que um chato
detesta emprestar os objetos que adquiriu com tanto esforço, e pelos quais tem
grande zelo e carinho.
No entanto, as pessoas legais, que dividem tudo com todos
e que tudo dos outros tem que ser seu, quando percebem o zelo e a organização
que alguém tem com suas coisinhas, abre a boca e diz:
– Ô, besteira, parece que nunca teve nada na vida!
E assim passeiam esses seres simpáticos pela vida afora,
falando mal de quem não é igual a eles. Divertindo-se, fazendo gracinhas com os
defeitos alheios, dando gargalhadas espalhafatosas, arrotando alto, emprestando
e pedindo emprestado, classificando, em infinitos concursos, quem é chato e
quem não é.
Enfim, a chatice humana é uma questão tão importante e
tão interessante que até merece uma ciência só para ela: a chatologia.
Essa ciência acredita que todo e qualquer ser humano tem direito a sua parcela
de chatice. É bem verdade que existe controvérsia no momento de definir o que é
chatice e o que não é. Existem os chatólogos que defendem que o chato
comedido é aquele que encaixa a sua chatice num momento bem apropriado. Todavia,
chato mesmo é aquele que nega a sua chatice e se apresenta como modelo de
perfeição. Por outro lado, aqueles que discordam de tudo e de todos, os chatos
que acham que apenas eles mesmos são os donos da verdade e do saber, não se
constituem objetos de estudo dessa área de investigação, pois pertencem a outra
classificação: são os chamados in-su-por-tá-veis, ficando, portanto, o
seu estudo além dos limites da chatologia.
Existem alguns chatólogos
que acreditam que o uso moderado da chatice é um excelente remédio para quem
quer se defender ou evitar aborrecimentos futuros ainda maiores. Saber se equilibrar
na linha imaginária da chatice máxima permitida é o grande segredo do bem
viver, do amar e ser amado.
Enfim, assim como na boa culinária, a vida também precisa
de tempero, por isso, “os muito legais que me perdoem, mas uma pitada de
chatice é fundamental”. É isso aí: “That’s the question”. E não é de agora que
se indaga sobre essa questão. Até Shakespeare queria saber: “Ser ou não ser?”
E, para encerrar com uma reflexão bem filosófica, por que não dizer:
– “Ser chato é humano; não ser, é divino”.
Ninguém é Feliz sem Problemas
e Outros Contos*
Fundação Vingt-un Rosado, 2009.
*Obra premiada no concurso literário escritor
Norte-riograndense: Projeto Rota Batida III.
Fundação Mossoroense em dezembro de 2008.
Fonte 2: Contos Reunidos,
Sarau das Letras, 2014, p. 292-298