O homem pode não ser rico, mas se ele tiver na bagagem a leitura será mais que isso: será sábio. A sabedoria, sem dúvida, é grandiosa, é tudo na vida, não na morte. Na morte, todos os homens são igualmente leigos.

Margarete Solange. Contos Reunidos, p. 98

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O Sonho de Catarina



conto de Margarete Solange

Catarina tinha um grande sonho: participar de um concurso de beleza e ser a vencedora. E é claro que seria a vencedora! – pensava e dizia. – Considerava-se belíssima e, na realidade, o era. A sua formosura era tamanha que chamava a atenção das pessoas quando passava pelas ruas. Ela sabia que muitos olhares estavam voltados em sua direção: homens, mulheres, crianças, todos olhavam quando ela passava faceira, nariz empinado, jogando propositadamente os sedosos cabelos de um lado para o outro. A finalidade principal desse seu gesto era mesmo chamar a atenção, provocar inveja nas mulheres que não tinham o privilégio de ter os cabelos lindos como os seus. Parecia estar constantemente desfilando numa passarela: tinha um jeito especial de andar... de sorrir... de falar. Uma coisa assim que não se explica. Os seus passos eram macios, parecendo flutuar em vez de caminhar; andava na ponta dos pés. Estudava balé (para satisfazer as suas vaidades, os pais faziam qualquer sacrifício). Cuidava da pele com produtos especiais, e que pele era a sua! Macia como pétalas de rosas. A sua cor era linda! Os olhos então, nem se fala...
Catarina era uma mocinha deslumbrante, mas tinha um defeito físico a respeito do qual ela nunca falava. Na verdade, ela odiava esse defeito e tentava ocultá-lo o quanto podia. Ninguém era conhecedor dessa sua particularidade, a não ser a própria família, ou melhor: o pai, a mãe, os dois irmãos mais velhos e a irmã mais nova, Claudenice.
Bom... continuando onde parei: o ponto fraco de Catarina era as orelhas, um pouco grandes. Porém, ninguém, além dessas poucas pessoas, sabia de seu segredo, porque ela tinha o cuidado de não deixá-las à mostra. Para manter esse segredo, fazia qualquer coisa e, como era uma mocinha muito enjoada, os seus irmãos a enfrentavam com a única arma que tinham contra ela, quer dizer, quase única, porque havia também o nome, que ela odiava: chamava-se Antônia Catarina, por causa de uma promessa feita por uma comadre de sua mãe, logo que soube que a menina nascera laçada pelo cordão umbilical (existem os que acreditam na ingênua superstição de que as meninas que nascem laçadas, se não se chamarem Antônia, não se criam).
Assim sendo, para deixá-la profundamente irritada, bastava chamá-la pelo primeiro nome ou, por outro lado, fazer menção ao tamanho de suas orelhas. Com essas duas armas, os irmãos conseguiam dela tudo que quisessem, qualquer favor, por mais delicado que fosse.
Claudenice, então, bastava que fosse levemente ofendida para lançar-lhe em rosto um desses dois “defeitos”, tão indesejados. Mas, na realidade, nenhum deles podia trair a irmã, revelando o seu segredinho sobre o tamanho de suas orelhas, uma vez que, quem o fizesse, receberia dos pais o mais duro castigo que pudessem dar. Para proteger Catarina, faziam qualquer negócio. Eles próprios encarregaram-se de esconder o defeito da filha durante toda a sua infância e adolescência. A pobre menina crescera cercada de muitos cuidados, a fim de que ninguém lhe percebesse tal imperfeição.

– 2 –


Finalmente, um concurso foi lançado, exatamente quando a garota havia atingindo a idade de dezoito anos, e nada a impedia de poder inscrever-se. Faltava-lhe o sono à noite, pensando como seria a novidade. O dia da inscrição chegou. Os seus pais, pessoalmente, providenciaram-lhe a participação no concurso. Tinham certeza da vitória.
Aproximava-se o grande dia. Catarina ensaiava, dia e noite, em frente ao espelho de seu quarto. Num desses dias, discutiu com a irmã, xingaram uma a outra, atracaram-se pelos cabelos... A mãe, pondo-se no meio das duas, deu um fim à confusão, fazendo ameaças de castigar a filha mais nova, caso ela voltasse a provocar a sua favorita. Quando estavam novamente a sós, Claudenice, sentindo-se magoada pela injustiça cometida pela mãe, fitou a irmã com um olhar penetrante, colérico, e disse-lhe:
– Cuidado hein, Antônia, o concurso vem aí... talvez suas adversárias gostem de saber que par de orelhões você tem!
Catarina gelou, tornou-se pálida, perdeu o sono. Enquanto isso, vez por outra se olhava no espelho e, vendo que a irmã estava adormecida, levantava os longos cabelos e contemplava as orelhas, que pareciam maiores a cada vez que, mecanicamente, repetia esse gesto neurótico.
No dia seguinte, passou a tratar Claudenice com as maiores gentilezas, fazendo-lhe todas as vontades. Nada poderia estragar o seu grande sonho de ser reconhecida oficialmente, em toda a cidade, como sendo a moça mais bela. As suas amiguinhas iriam morrer de inveja. Quando ganhasse o concurso, teria dinheiro suficiente para fazer uma plástica, um implante de umas orelhas feitas sob medida, ou qualquer outra coisa que solucionasse o seu problema. Depois disso, então, poderia acertar as contas com a irmã. Daria o troco por ter tido que lhe fazer bajulações além da conta.

 

– 3 –


Numa noite, nem quente nem fria, deitou-se mais cedo que de costume. Com o olhar fixo no teto do quarto, sonhava com o grande dia, e dizia para si mesma que tudo estava sob controle, que nada, nem ninguém iria atrapalhar os seus planos... até que:
– Antônia... queridinha...– Era Claudenice que entrava pela porta do quarto, falando com ironia e fitando-a com cara de felicidade. – Adivinha o que tenho pra te dizer?
Catarina, com voz doce, tentando ser muito agradável, perguntou à irmã o porquê de tamanha felicidade estampada no seu rosto. Ela, então, fez-lhe saber a grande nova: todas as candidatas do concurso iriam usar roupas e penteados iguais... e o modelo escolhido fora os cabelos presos no alto da cabeça, deixando as orelhas à mostra.
– Essa não!... não!... não!... – gritava a bela moça, no maior pranto.
Claudenice ria... ria... ria... e quanto mais a outra se desesperava, mais ela gargalhava, segurando os próprios cabelos no alto da cabeça e desfilando pelo quarto com passos leves, imitando o andar da candidata à mais bela garota da cidade.
– Antônia Catiii... – cantava provocadora – olha as orelhinhas de fora. Catiii!... ninguém vai conseguir enxergar seus belos olhos cor de mel... – desatava a rir – mas as suas orelhas...
A moça chorava, desesperada. Não havia ninguém na casa que pudesse ouvi-la. Todos tinham saído. Ela se jogava na cama e colocava os travesseiros em volta da cabeça. No entanto, continuava ouvindo a irmã anunciar o seu nome, e como uma serpente que cospe longe o seu veneno, lançava no ar uma multidão de palavras ferinas.
A bela moça, ainda transtornada, deixou-se conduzir até diante do espelho. A irmã, com expressão impiedosa no olhar, levantou-lhe os cabelos de fios de seda, pondo-lhe as orelhas de fora. Catarina, horrorizada, fechou rapidamente os olhos para não ter que vê-las, porque lhe pareceram enormes, maiores que nunca!
– ANTÔNIA CATARINA! – anunciou com voz enfática. – Vencedora do concurso das mais belas orelhas do Brasil! – desatava a rir malvadamente, chegando-se mais para perto da pobre irmã, que lutava para não ouvir mais nada.
Não suportando a tortura, correu em direção à cozinha e, num impulso, abriu a gaveta do armário, tirou uma faca afiada e cortou a orelha direita. Mirou-se no vidro do guarda-louça. Arrependeu-se. Atirou a faca no chão. Contemplou a própria orelha ensanguentada no assoalho da cozinha.
– Não! Não! – gritava descabelando-se, sentindo o sangue quente descer de sua orelha decepada. – Minha orelha!... – chorava. – Minha orelhinha!...
Nesse instante, Claudenice apresentou-se no portal que dividia a cozinha da sala de jantar. Apanhou a faca do chão e a estendeu em direção à irmã, que a fitava aterrorizada.
         – A outra Cati... a outra também é enorme...
         – Não... a outra não... a outra não... a outra não – repetia, afastando-se da irmã, protegendo a orelha esquerda com a mão.
         Catarina tentava gritar bem alto para que alguém pudesse ouvi-la, mas não conseguia. A voz foi perdendo a força e foi sumindo... sumindo... sumindo...      

– 4 –


– Cati! Cati! – chamava-lhe uma voz, que parecia vir de muito longe. – O que foi, Cati?
Despertou ouvindo a voz terna de Claudenice e, sentindo-lhe a mão quente que repousava carinhosamente sobre o seu ombro. Catarina abraçou-a, chorando, enquanto segurava a orelha direita, como sem acreditar que realmente estivesse no seu devido lugar.
Quando contou sobre o terrível pesadelo que tivera, a irmã, muito compadecida, prometeu-lhe que jamais voltaria a zombar de seu defeito, e assegurou-lhe que, na verdade, não achava que suas orelhas eram tão grandes assim, apenas via nisso uma maneira de atingi-la nas horas das desavenças (Coisas desse tipo são muito comuns nas briguinhas entre irmãos).
A partir desse acontecimento, Catarina tornou-se mais humilde e menos presunçosa. Conseguiu realizar o seu sonho... – Não o sonho de cortar a própria orelha, claro! – Realizou o grande sonho de ser eleita a garota mais bonita de sua cidade. Ganhou um bom dinheiro como prêmio, porém não quis fazer plástica. Desde então passou até a usar penteados que lhe deixassem à vista o pequeno defeito. Vez por outra, ouvia algum comentário desagradável com relação às suas orelhas, mas não dava muita importância. Creio que aprendera a lição. Faço minhas as palavras de minha mãe, que, por sua vez, deve tê-la aprendido com a mãe dela: “Ruim com elas, pior sem elas!”


Fonte: Margarete Solange.
Ninguém é Feliz sem Problemas.
Fundação Vingt-un Rosado,
2009, p. 33-37.

.
Obra premiada no concurso literário
escritor Norte-riograndense:
Projeto Rota Batida III.
Fundação Mossoroense