conto de Margarete Solange
Descobri algo muito interessante:
ninguém é feliz sem problemas. Assim sendo, se você não tem problemas, trate de
arranjar pelo menos um. A falta de problemas pode trazer sentimento de culpa ou
mesmo complexo de inferioridade. Duvida? Então vou contar como cheguei a essa
conclusão, partindo de minhas próprias experiências de vida.
Sou
escritor de romances. Chamo-me Jorge Davi; Davi significa amado; contudo, não
convém chamar-me de Jorge Amado, senão pensarão tratar-se de outro escritor
brasileiro, autor de Gabriela Cravo e Canela e Capitães da Areia.
O meu estilo está mais para Machado de Assis e Edgar Allan Poe, embora o escritor
baiano esteja entre os meus favoritos. Não sou tão famoso quanto ele, mas poderia
até tornar-me, se me candidatasse a ocupar a sua cadeira na Academia Brasileira
de Letras. Essa mesma cadeira pertenceu ao célebre Machado de Assis, já imaginou?
Deixa
pra lá. Afinal, dizem que querer fazer parte da Academia Brasileira de Letras é
uma vaidade e, como não sou vaidoso, acho melhor fazer como Monteiro Lobato,
que ficou de fora por causa da implicância que tinha com relação aos acentos.
Ele achava que as palavras brasileiras não deveriam ser acentuadas, e ponto
final! Lendo sobre a vida desse escritor das historinhas infantis, achei muitas
semelhanças entre nós dois. Não tenho queixas contra os acentos, apesar de não
reter na memória as tediosas regras de acentuação; porém, em se tratando de
vírgulas... Sinceramente, creio que nunca enfrentei problema na vida que fosse
mais complicado que colocar e retirar vírgulas na revisão final de um romance.
Sempre
me achei um homem bem sucedido. Advogado de boa fama, escritor que agrada ao público.
Considerando que moro num país onde as pessoas leem pouco e, mesmo os que são
leitores assíduos, não têm o costume de comprar livros, sinto-me satisfeito,
posso dizer que as minhas obras vendem bem.
Como advogado experiente, ouvi e, mesmo aposentado, ainda ouço
muitas histórias incríveis. Modifico um pouco aqui e ali, exagero em alguns
fatos, noutros tenho que suavizar, devido a serem episódios por demais cruéis.
Para escrever romances ou contos, temos que modificar a realidade. Se a retratamos
sempre tal e qual ela é, somos apenas plagiadores sem criatividade. Prefiro ser
criativo.
Logo que me aposentei, respirei fundo e combinei comigo mesmo:
“Vou sentar em frente ao computador e me afogar nos meus escritos”.
Gosto
de trabalhar durante a noite, enquanto todos dormem. Durmo toda a manhã e,
depois do almoço, recomeço o meu prazeroso trabalho.
Estava
rindo à toa. O que mais um escritor poderia desejar para sentir-se feliz e realizado?
Para
satisfazer às vontades de minha jovem esposa, separava o domingo para me divertir,
no clube, em companhia de alguns amigos. Algumas vezes até me distraía; no entanto,
vez por outra, pegava-me maquinando acerca de meus romances e personagens. A minha
mente trabalhava sem parar. Não restava dúvida de que esses encontros eram proveitosos,
pois os gestos, maneira de falar e problemas curiosos dos amigos acabavam indo
para as páginas dos meus livros.
Todos
tinham problemas, nenhum deles estava satisfeito. As crises financeiras vinham
em primeiro lugar; em seguida, os desajustes conjugais e comportamento dos filhos.
Eu
chegava a sentir uma certa culpa por não compartilhar de seus problemas. Casei
aos trinta e cinco anos, e minha esposa era simplesmente a costela que tinha
sido tirada do meu lado. Havia entre nós muito respeito e uma cumplicidade invejável.
Melina era uma mulher feita sob medida para um escritor.
Tivemos
quatro filhos: Miguel, o primeiro, está com dezessete; Victor Hugo, com
quatorze; e os gêmeos, Graciliano e Emily, com dez.
Eles
são tremendos. Fazem uma barulheira no capricho, especialmente se estou
precisando de muita concentração ou tentando tirar uma soneca. Parece que seus
pertences pessoais acham de desaparecer sempre nos momentos em que estou
dormindo ou tentando encerrar um capítulo importante. Melina bem que tenta
ensinar-lhes a disciplina; no entanto, essa turminha do barulho acaba fugindo
do controle. Achei que a indisciplina dos meus filhos era um problema digno de
ser reclamado em momentos de reunião com os amigos. Todavia, sempre que tentava
desabafar sobre isso, eles não me deixavam ir adiante.
–
Isso não é nada... – comentava alguém com voz exaltada – Pior os meus que, na
semana passada, blá-blá-blá-blá-blá-blá...
E
assim cada um deles contava horrores sobre os seus próprios rebentos. “Bom, sou
mesmo um felizardo”, pensava comigo mesmo. “Não tenho de que me queixar. Apesar
dos pesares, os meus filhos até que não são tão trabalhosos. Pelo menos se
comparados aos dos meus amigos...”
No
momento em que as reclamações eram sobre esposas, também diziam que eu não
tinha do que me queixar. E, para que não me achassem esnobe, eu ficava tentando
ser participativo nas conversações:
– É isso mesmo! As mulheres gastam
demais. Melina vive comprando roupas e sapatos...
Qual
nada! Eles nunca me deixavam prosseguir...
–
O que é isso, Davi, você reclama de barriga cheia, homem. Você ganha mais que
suficiente para sustentar as vaidades de sua mulher...
–
Concordo plenamente. Além do mais, Melina é uma mulher elegante, alta, está
sempre em boa forma, tem presença e sabe se vestir. Tem mais é que se arrumar.
Pior é a minha, que quanto mais se arruma mais feia fica.
Deram
uma gargalhada em coro unissonante. Tinha que rir também, claro, embora não
aprovasse aquele tipo de comentário. Afinal de contas, eu me relacionava muito
bem com as esposas dos meus amigos, eram todas muito gentis comigo.
Era
sempre assim. Todos tinham problemas, menos eu. Quando tinha algo para me
queixar, nem me deixavam prosseguir, porque os meus problemas não eram nada
comparados aos deles próprios. Ninguém estava disposto a ouvir minhas
reclamações. Pensei até em consultar um terapeuta, a fim de descobrir qual era
o meu real problema. Então pensei: “a primeira coisa que ele irá me perguntar
é”:
–
Diga, Sr. Jorge Davi, qual é o seu problema?
E
o que eu lhe responderia?
–
Meu problema é que todo mundo tem mais problemas do que eu – ou talvez: – o
problema é que ninguém se interessa pelos meus problemas. Nunca encontro um
amigo que esteja disposto a me ouvir sem dizer que tem mais problemas do que
eu...
Então,
ele poderia me dizer:
–
Pois muito bem, Sr. Jorge Davi, a partir de agora tem a mim para ouvi-lo.
–
Pois é, doutor, se eu pagasse aos meus amigos para me ouvirem, quem sabe, eles
também fizessem esse esforçozinho...
Imediatamente
me arrependo desses pensamentos. Não seria gentil de minha parte dizer coisas
desse tipo. Afinal de contas, o terapeuta é um profissional como outro qualquer
e precisa ser remunerado pelo seu trabalho. Mas, nada me tira da cabeça que ele
também acabaria desabafando seus problemas comigo, iniciando pelas famosas
palavras: – Pior eu que...
Desisti
da terapia. Creio que ler e escrever ajudam a relaxar as tensões do dia a dia
muito mais que as idas ao terapeuta.
De
repente, sem quê nem mais, senti-me tremendamente chateado. Não podia reclamar
da indisciplina dos meus filhos sem lembrar que outras pessoas tinham muito
mais motivos para reclamar do que eu. A partir de então, não me queixava de
nada; contudo, interiormente, um tremendo mau humor se apoderava de mim. Ora,
que culpa tenho eu se os filhos dos outros são mais trabalhosos do que os meus?
Será que tentar impor disciplina era exigir deles a perfeição? Parece que
alguns acham isso.
– Deixe
os bichinhos! – alguém fala sempre que pedimos silêncio ou exigimos que os
filhos guardem os pertences que simplesmente abandonam em qualquer canto da
casa.
– Isso
é coisa da idade – fala outro defendendo as travessuras de nossos pequenos,
deixando-nos sem graça. Todavia, como diziam os antigos: “É de criança que se
aprende!”. Há também um provérbio bíblico que diz: “Ensina o pequeno no caminho
que deve seguir e quando crescer não se desviará dele.”
Acabei por perceber que
os pais querem sempre parecer bonzinhos com os filhos dos outros, mas não são
igualmente gentis com os seus próprios rebentos, especialmente quando estão
sozinhos na intimidade do lar. É por isso que os jovens sempre nos chantageiam
dizendo a bem conhecida frase:
– Os
pais de fulano são tão legais!
Para
evitar sentir-me culpado das desgraças dos outros, reduzi as minhas idas ao
clube. Pedia que Melina levasse nossos filhos sem mim, sob o pretexto de que
precisava de sossego para produzir os meus trabalhos. Eles não gostavam nem um
pouco dessa ideia, claro. Reclamavam, numa ladainha sem fim.
– Qualquer
pai sai pra passear com os filhos, menos o da gente...
– Eu
bem queria não ter um pai que fosse escritor...
Por
fim, Melina, com seu jeitinho matreiro de quem sempre consegue tudo o que quer
comigo, convenceu-me a dar mais atenção às queixas da garotada. Novamente a paz
voltou a reinar no convívio familiar. Já podia ouvi-los novamente falando com
orgulho sobre o pai escritor.
Voltei a frequentar o
clube. Os problemas dos meus amigos aumentaram, lógico.
– Rapaz, esse negócio
de ter duas mulheres é o fim. Não tem dinheiro que chegue. Minha ex-mulher,
agora que nos separamos, só anda toda bonita, às minhas custas, claro! Ela está
me fritando vivo com essa coisa de pensão dos filhos... Se tivesse imaginado o
tamanho do meu prejuízo, tinha me ajeitado com ela. A minha atual mulher,
apesar de bem mais jovem que a outra, está indo no mesmo caminho, as mesmas
queixas que tinha da antiga já vi que vou ter dessa também: as mulheres são
todas iguais, só muda a cor do cabelo e o nome dos filhos!
Todos ouviram calados
o desabafo desse companheiro. Enquanto ele falava, pude ver-lhes nos rostos o
quanto lamentavam a sua desventura. Todos o compreendiam e queriam confortá-lo
com alguma palavra de solidariedade.
E eu? O que tinha para dizer?
Nem sempre devemos externar o que na realidade estamos pensando. E, particularmente,
achava que ele não deveria ter largado sua mulher, porque não havia nada errado
com ela. Em minha opinião, o intransigente era ele. Entretanto, mantive a minha
boca bem fechada. Se o acusasse, evidentemente, todos me condenariam. Diriam
que eu não era capaz de entendê-los porque tenho uma mulher maravilhosa e
gentil, boa situação financeira, filhos equilibrados, etc, etc...
Não sei se isso é coisa de
minha cabeça, mas acho que quanto mais os pais vivem bem, mais chances os
filhos têm de ser equilibrados. Além disso, se minha mulher é considerada
jovial e charmosa, acho que também tenho parte nisso, pois além de incentivá-la
a se cuidar, dou-lhe algumas dicas sobre o que fazer para se tornar agradável
aos olhos. Como posso negar-lhe as vontades, se quanto mais eu a agrado, mais
ela torna-se carinhosa e companheira?
Pois é, como ninguém vive sem
problemas, acabei me deparando com um, que veio a tornar-se um espinho cravado
em minha carne.
Como havia iniciado muito cedo
minha carreira de advogado, muito cedo fui aposentado. Restou todo o tempo do
mundo para dedicar-me unicamente aos meus escritos. Como sou um bom ouvinte,
assuntos não me faltam. Basta sentar em meio às pessoas e deixá-las à vontade
para falar, e elas me dão tramas para muitos romances. Início, meio e fim não
me dão trabalho na hora de escrever. O título, se não surgir naturalmente, escolho
alguns a partir do que foi dito na obra e faço um concurso entre parentes e
amigos. Isso também não chega a tirar o sono de nenhum escritor. No entanto, a
revisão final é que pode fazer com que o escritor maldiga o dia em que resolveu
escrever suas primeiras linhas.
Vem o primeiro revisor, lê e faz
as suas correções. Geralmente esse vê os erros mais primários: troca de letras,
concordância verbal e nominal, tempos dos verbos, repetição de palavras, etc.
O escritor faz a crítica da
revisão e concorda com todas as correções sem problemas. Sente-se aliviado,
achando que sua obra já está prontinha para ser publicada. Então, um outro amigo
seu, muito experto em gramática, pede para dar uma conferida. – Ótimo! Nunca é
demais dar uma aprimorada – penso eu. Só que geralmente esses viciados em
gramática são muito virgulinos, isto é, têm mania de vírgula. Então,
explicam com convicção as regras gramaticais, que sabem de cor e salteado, e
convencem o escritor a virgular toda a sua obra. Não satisfeito com
aquela invasão de vírgulas, um escritor ressabiado como eu pede a ajuda de um
terceiro revisor, alguém que também seja considerado muito bom em manejar a
gramática. Resultado: uma grande parte das vírgulas é indicada a bater em
retirada.
A vírgula é uma pedra no sapato
de muita gente. Enquanto uns têm certeza de que ela fica, outros juram que ela
não deve existir. Ainda bem que, em crises conjugais, ninguém questiona o
emprego da vírgula, senão haveria muito mais separação entre os casais.
Certo escritor disse que o uso
excessivo de vírgulas torna o texto por demais pedante. Concordo com ele.
Outros sugerem que se trata de uma questão de estilo, e por aí vai. Bom mesmo
seria se as regras nunca tivessem exceções.
Aborrecido com esse tira e bota
de vírgulas na revisão final de minhas obras, tive uma crise de mau humor e
acabei descarregando o meu desagrado em cima de todo mundo.
Numa certa manhã de domingo,
estávamos reunidos no clube, conversando em volta da piscina. Os amigos resolveram,
então, comentar sobre a minha cara de preocupação. Ao desabafar o motivo de
minha angústia, imediatamente me deram razão. Ninguém me interrompeu para dizer
que tinha problema mais sério que esse. Todos concordaram que era um problema
chato e difícil de resolver.
Creio que esse tira e bota de
vírgulas vai me perseguir a vida inteira. Mas não faz mal; afinal, ninguém vive
feliz sem problemas, não é mesmo? Por outro lado, acabei até me sentindo
realizado, pois só assim os meus amigos concordaram que, apesar de minha vida
boa, também tenho motivos para queixas.
Depois desse acontecimento, uma
pergunta ficou martelando em minha cabeça: será que existe alguém que nunca
teve dúvida quanto ao emprego da vírgula? Que tenha sempre absoluta certeza de
que, em certos casos, ela está mal colocada e deve sair, ou quando acontece o
contrário, isto é, ela não foi colocada e deve existir? Não sei, não. Talvez
exista, quem sabe? Existe gente pra tudo! Já imaginou se esse sabe-tudo virgulino
estivesse em volta da piscina exatamente no dia em que pude desabafar com os
meus amigos sobre o meu grande problema? Não quero nem pensar!
Pois é,
agora que descobri que o emprego da vírgula chateia muita gente, vou sempre
carregar esse trunfo na manga. Assim, cada vez que os amigos estiverem
reclamando da situação financeira, das mulheres e dos filhos, e eu não tiver de
que me queixar, simplesmente me saio com essa:
– Pois é, pessoal, a vírgula
ainda continua sendo o meu grande problema...
.
Fonte: Margarete Solange.
Ninguém é Feliz sem
Problemas.
In Contos Reunidos
In Contos Reunidos
Editora Sarau das Letras
2014, p. 301-308.