conto de Margarete Solange
Tudo
aconteceu exatamente como já lhe contei anteriormente. Não tenho nada mais a
acrescentar. Repetirei a mesma história quantas vezes for necessário, mas pode
estar certo de que falo a verdade, e que não tenho motivos para omitir tampouco
acrescentar nenhum detalhe além do que realmente aconteceu...
Cheguei à fazenda de meu
tio à tardinha. Ele estava muito doente. Não nos conhecíamos, porém ele não me
tratou com muita cerimônia. Estava consciente de que tinha pouco tempo e, assim
sendo, foi direto ao assunto.
Chamou-me
porque tinha uma herança para deixar-me. Era rico e, como não tinha filhos,
seria eu, o seu sobrinho, o único herdeiro. Deixou bem claro que eu tinha que
continuar administrando seus bens exatamente como ele vinha fazendo por todos
os anos de sua existência. Não gostava de mudanças. Não confiava em ninguém. Seu lema era
atropelar quem lhe atravessasse o caminho para atrapalhá-lo em seus negócios.
Acumular riquezas era sua meta, e deveria ser a minha a partir de então.
Não
deixaria nenhuma moeda para quem quer que fosse; não era generoso e, portanto,
proibiu-me de sê-lo também. Eu teria que ser exatamente como ele era: mesquinho
e ranzinza. E, principalmente, teria que herdar o ódio que sentia por um dos fazendeiros
vizinhos. Dar continuidade a esse ódio seria a principal condição para que me
tornasse milionário.
Mostrou-me
toda sua fortuna empilhada junto a uma das paredes do velho sótão. Se eu aceitasse
suas condições, seria dono de tudo que possuía... senão, ele procuraria um
outro herdeiro qualquer.
O ódio
era um sentimento que eu desconhecia. Nunca tive motivos para odiar ninguém.
Mas, para não contrariar um velho moribundo, ou para não o fazer mudar de ideia
e desistir de deixar-me a sua fortuna, ouvi em silêncio todas as suas imposições.
Por fim, contou-me por que odiava o velho Freitas:
“Crescemos juntos e
sempre fomos amigos apesar de surgirem algumas desavenças de vez em quando... Quer
dizer, eu pensava que éramos amigos. Tínhamos os mesmos pensamentos: não confiávamos
nas pessoas, e amávamos o dinheiro acima de tudo. Conseguimos enriquecer à
custa de muitos anos de trabalho árduo e compramos nossas terras vizinhas,
assim seríamos inseparáveis. Depois que ele casou, começou a amolecer o coração.
Passou a pensar que depois da morte poderia ter que dar conta de seus atos e,
por isso, decidiu tornar-se um homem bom e generoso. Fazia questão de ajudar
financeiramente a quem necessitasse. Isso doía em minha alma. Desde então,
passamos a nos desentender constantemente, cada um defendendo seu modo de
pensar. E o pior é que ele queria convencer-me a mudar e ser como ele, que se
tornou um demente da noite para o dia. Quando saíamos às compras, irritava-me
vê-lo cumprimentar sorridente a todos que cruzassem o seu caminho. – Ora, um
homem impõe respeito pela postura que tem. Andar com os dentes à mostra é coisa
de menino. – Passei a dirigir, a esse que em outros tempos dizia-se meu amigo,
o mesmo mau-humor que dedicava a todos que me dirigissem a palavra. Mesmo
assim, ele insistia em fazer-me suas visitas diárias. No final da tarde,
chegava, trazendo sempre alguma coisa em suas mãos para ofertar-me. Antes, esse
seu gesto agradava-me, porque sua esposa cozinhava muito bem e dava-me prazer
provar de suas delícias. Com o tempo, essa sua atitude passou a deixar-me ainda
mais irritado. Via nisso uma maneira de afrontar-me. Por acaso necessitava eu
de suas esmolas? Não tinha muito mais do que ele? Passei a atirar seus bolos e
doces aos porcos tão logo ele se despedia de mim. Quanto mais eu enriquecia,
mais o desprezava. Para aumentar o meu desagrado, ele desmanchava-se em
conselhos, fazendo citações de versos bíblicos... Um dia disse uma palavra que
me fez decidir que nunca mais queria vê-lo: afirmou ter piedade de mim... Piedade?!...
Tudo, menos ser digno de piedade. Percebi que era inveja que ele sentia, porque
eu era muitas vezes mais rico que ele. As pessoas me temiam e me respeitavam.
Nessa mesma tarde, as minhas suspeitas se confirmaram. Eu mandei fazer para mim
uns óculos de ouro. Porque sentia como se fosse o rei dessas terras, e como não
teria sentido usar uma coroa ou um cetro de ouro, providenciei os óculos, a fim
de que todos vissem e comentassem a respeito de minha soberania. Mostrei-lhe os
óculos com o propósito de que ele se encarregasse de espalhar a notícia pela
cidade. E ele, por inveja, desdenhou de mim. Levantou-se todo seguro de si e
trouxe a Bíblia que repousava inofensiva sobre o balcão de minha sala. Leu para
mim alguns versos que nem cheguei a ouvir, visto que uma ira sem tamanho ensurdeceu-me.
Minha cabeça girou, fiquei cego de raiva, passei mal, o sangue fugiu-me das
veias. Expulsei-o aos gritos, e ele se foi meneando a cabeça e olhando-me com
olhar de quem queria sugerir que eu carecia de piedade. Ele sabia que não
admitia que ninguém me dirigisse tal sentimento. Sabia, porque já havia lhe
confidenciado isso muitas vezes. Logo que ele se foi e refiz-me do meu
descontrole emocional, procurei incansavelmente por meus óculos de ouro, mas
não fui capaz de encontrá-lo em lugar nenhum da casa. Não gosto de perder nem
um fósforo que ainda não foi usado, quanto mais um objeto de ouro maciço, da
melhor qualidade... Desde então, não me ocupei apenas com o trabalho; alimentar
o ódio que sentia por aquele inimigo tornou-se, para mim, uma ocupação diária.
Assim, meu ódio por ele crescia a cada manhã que despertava e lembrava-me de
seu rosto bondoso, tentando converter-me de meus sentimentos ruins, quando, na
verdade, ele próprio estava podre de inveja de minha prosperidade, do respeito
e do temor que meu nome suscitava. Eu sou o rei desse lugar e você será o meu
sucessor. Reinará sobre essa gente que trabalha em minhas terras e vive pelas
redondezas. E vai odiar o Freitas com ódio crescente, como eu tenho odiado, até
um dia destruí-lo totalmente. Esse sentimento apodreceu-me por dentro, eu sei,
mas não me importa que ele tenha me destruído, se você estiver disposto a dar
continuidade à missão de destruir o Freitas, também... Sim, porque ele não
suporta a ideia de ter nenhum inimigo... – Nesse instante, fitou-me com semblante
infeliz e olhar maléfico. – Se não aceitar minhas condições, arranjarei, sem
dificuldades, um outro herdeiro qualquer que não se recuse a fazer todas as
minhas vontades.”
Ora, era uma fortuna
imensa. Assim sendo, não hesitei em dar a resposta: ‘Seja tudo conforme o
senhor deseja’, respondi, tentando fazer de conta que tínhamos afinidade, embora
ele fosse, para mim, não mais que um estranho. Eu me retirei do aposento,
sentindo-me rico e poderoso. Quanto ao ódio pelo Freitas, não estava certo de
que iria conseguir sequer evitá-lo, porque sempre fui muito simpático, e ter
amigos era algo de suma importância para mim. Além do mais, o Freitas seria meu
vizinho mais próximo, e os motivos de meu tio não me convenceram a detestá-lo.
Tentava não me inquietar com esse assunto, mas o fato é que sou do tipo que leva
seus compromissos muito a sério, e isso me faz impaciente e ansioso. Deitei-me,
porém não consegui dormir pensando em ter que odiar alguém; sim, porque, se
prometi que iria odiar o Freitas pelo resto de minha vida, teria que cumprir
com o prometido, uma vez que sou extremamente fiel às minhas promessas. Levantei-me
e perambulei pela casa, meditando como deveria ser minha vida a partir de
então. O velho deixou claro que teria que ser uma espécie de continuação dele mesmo
e, pelo que percebi, não éramos em nada parecidos.
Quando
não tinha mais nenhum lugar na casa onde não houvesse caminhado e observado cuidadosamente,
subi ao sótão. Abri a porta e entrei, erguendo alto o candelabro que levava
comigo. Pude ver muitos objetos antigos, dentre eles uma Bíblia grande,
empoeirada e roída pelas traças. – Quem sabe, encontraria nela alguma palavra
que trouxesse alívio à minha alma – pensei atordoado.
Aproximei-me
do livro sagrado, tomei-o em minhas mãos e levei-o para junto da luz, abrindo-o
com olhos ansiosos, sem nem ao menos espanar a poeira da capa, que era abundante.
Para minha grande surpresa, a resposta do Alto para meu coração ansioso, estava
lá... Os óculos de ouro de meu tio Apolinário estavam dentro da velha Bíblia abandonada.
Com olhos arregalados, li em voz alta o que estava escrito onde as traças não
haviam ainda devorado nenhuma letra.
“PORQUE O AMOR AO DINHEIRO É A RAIZ DE TODA
ESPÉCIE DE MALES, E NESSA COBIÇA ALGUNS SE DESVIARAM DA FÉ, E SE TRANSPASSARAM
A SI MESMO COM MUITAS DORES”.
Prossegui iluminando o
sombrio sótão e parei diante das muitas cédulas e das não tão poucas barras de
ouro. Era uma fortuna incalculável. E o mais incrível é que todo aquele tesouro
muito em breve passaria a me pertencer. Em vez de sentir-me feliz, realizado,
senti um peso na alma, uma angústia indizível me rodeava querendo invadir-me, a
fim de enegrecer meus dias de sol brilhante. Toda aquela riqueza fez-me lembrar
uma mulher vestida de finíssimas vestes reais, adornada com muitas joias de
pedras preciosas, cetro e coroa de ouro, convidando-me para seus braços com o
sorriso mais belo e encantador que uma mulher sedutora pode exibir. Esta mulher
seria minha ruína, porque se chamava “MORTE”. Arrepiei-me subitamente como que
sentindo a sua presença sutil. Pude ver, em pensamentos, o rosto do tio
Apolinário: em seus olhos, o ódio brilhava com força intensa. O ódio que o
destruíra em tão poucos anos, fazendo-lhe maldita a existência, a sua fortuna,
e maldito seria qualquer um que dela se apoderasse. O esplendor de todo o ouro
que vi não cegou o meu entendimento. Senti náusea e tive ânsias de vômito. Apressei
em retirar-me daquele cenário sinistro, macabro. Antes mesmo de alcançar a
saída, percebi um tênue facho de luz aproximando-se, parei subitamente e
confesso que me senti apavorado. Nenhum empregado dormia na casa, e todos moravam
bem distante. O meu tio fazia questão que fosse assim... e assim sendo, não
sabia exatamente o que, ou melhor dizendo, quem estava vindo ao meu encontro.
Meus pensamentos ficaram meio desconexos, recuei temeroso, indo para longe da
luz, que se aproximava vagarosamente.
Tio Apolinário surgiu no
portal equilibrando-se sobre suas pernas bambas, apoiado à sua bengala,
segurando uma vela acesa na outra mão trêmula. Era um morto vivo que estava
diante de mim, e isso me dava uma sensação de mal estar. Admito que vê-lo
defunto, deitado quieto num esquife, seria uma visão mais agradável. Ergui o
candelabro para que a claridade pudesse prevalecer sobre as trevas. Procurei
relaxar a fim de que os meus pensamentos se ordenassem e eu pudesse agir de maneira
racional.
– Os
óculos!... – pensei num relance. – Quando lhe mostrar os óculos, todo o ódio
que turba o semblante do meu velho tio será banido, ele mudará suas feições e
deixará de ter essa aparência horripilante. A mágoa contra o Freitas acabará, então
ele poderá morrer em paz, e seu dinheiro deixará de ser maldito... ou quem sabe,
até recuperará a sua saúde e, assim sendo, poderemos administrar juntos sua
imensa fortuna.
Apossei-me
do livro sagrado, abri-o de modo rápido e nervoso, mostrei ao velho os óculos
de ouro, na expectativa de que tudo acontecesse conforme previ. Ele recuou
assustado como um animal acuado, arregalou os olhos, pareceu bastante surpreso.
Cheguei a pensar que ia desatar em lágrimas; por isso, avancei sorrindo
aliviado, crendo que tudo estava caminhando para um desfecho feliz, e senti,
pela primeira vez, um fiozinho de ternura me fazer simpatizar com aquele velho
repugnante. Todavia, meu sorriso rapidamente me fugiu dos lábios.
–
Pensei que fosse meu amigo... – iniciou com voz amargurada, – Você era quase um
irmão pra mim... mas você nunca foi meu amigo... – aproximou-se, cambaleando, e
bateu com a bengala nos óculos, fazendo-o cair bem longe. – Sabia que um dia
você voltaria aqui para me devolver seu furto, para me tapear novamente,
fazendo-se de generoso. Você pensa que me destruiu, seu velho podre, mas o meu
ódio não será enterrado comigo... Ele estará bem vivo para lhe torturar pelo
resto de seus dias...
Continuou
falando e falando, com voz cada vez mais cansada e fraca. Eu o ouvia,
chamando-me de Freitas e fitando-me com ódio cruel, como se quisesse ferir-me
mortalmente com o olhar. Como não sabia o que fazer, apenas assisti, paralisado
por um longo tempo, sentindo pena daquela pobre e irreal criatura. Qualquer
gesto que fizesse naquele instante denunciaria a minha piedade, e isso iria
deixá-lo ainda mais alucinado.
Ele movia-se
freneticamente, batendo no chão com a bengala folheada a ouro, quebrava os
objetos que havia espalhados pelo aposento, lançava alguns deles em minha direção.
Paciente, apanhei os óculos do chão, coloquei-os no bolso da camisa, e escorei-me
à parede para esperar que ele cansasse e precisasse de minha ajuda para conduzi-lo
de volta ao seu leito. O cheiro de mofo fazia aumentar ainda mais o meu desejo
de escapar daquele sótão horrendo. Tive então uma ideia repentina: desceria e
procuraria algum remédio ou traria um pouco de água com açúcar para o velho.
Quando retornasse, quem sabe, ele deixaria de me ver como sendo o seu inimigo
Freitas, se acalmaria e só então poderia me aproximar dele. Eu me retirei
cuidadosamente para não tropeçar nos degraus, na escuridão. Levei um pouco de
tempo para ir e vir, o tempo suficiente para que tio Apolinário tivesse incendiado
os quatro cantos do velho sótão. O fogo espalhou-se rapidamente pelo aposento.
Fiz várias tentativas de chegar perto de meu tio, mas ele impedia-me jogando algum
objeto em minha direção, ou mesmo as barras de ouro, para atingir-me, e conseguiu
várias vezes. Eu tentei salvá-lo, acredite; tentei bastante, mas ele fugia de
mim ou me enfrentava surrando-me com a sua poderosa bengala; surpreendeu-me que
ainda tivesse tanta força. Por fim, o círculo de fogo se fechou e não pude mais
passar. As labaredas pareciam famintas, avançando assustadoramente, devorando
tudo. Vi quando o fogo o envolveu sem misericórdia. Enquanto as chamas o
consumiam, ele gritava amaldiçoando o Freitas. Eu não podia fazer nada para
ajudá-lo, mas ainda podia fazer por mim mesmo. Optei pela vida, resistindo à
tentação de tentar alcançar qualquer uma das as muitas barras de ouro que
luziam em meio às chamas ardentes. Lembrei-me dos óculos que estavam em meu
bolso, atirei-os no meio das labaredas, não queria levar comigo nada daquela
herança maldita.
Não sei
se o velho tinha posto fogo em toda a casa ou se o vento o havia feito
espalhar-se tão depressa. O fato é que ele estava por toda parte, destruindo
tudo que encontrasse pela frente. Saí pela porta principal levando, dentro de
minha mala, somente o que de fato era meu. Fugi daquele inferno em chamas
sentindo-me vivo e livre como um pássaro que escapa do laço do passarinheiro.
Quanto
ao fato de não terem encontrado vestígios do ouro em meio às ruínas de sua tenebrosa
morada, nada posso dizer, porque não estava lá quando o incêndio acabou, e jamais
voltei àquele lugar.
Fonte: Margarete Solange.
Ninguém é Feliz sem Problemas.
Fundação Vingt-un Rosado,
2009. p. 133-140
2009. p. 133-140
Obra premiada no concurso literário
escritor Norte-riograndense:
Projeto Rota Batida III.
Fundação Mossoroense