O homem pode não ser rico, mas se ele tiver na bagagem a leitura será mais que isso: será sábio. A sabedoria, sem dúvida, é grandiosa, é tudo na vida, não na morte. Na morte, todos os homens são igualmente leigos.

Margarete Solange. Contos Reunidos, p. 98

terça-feira, 5 de maio de 2015

Prefácio da obra - O Velho e a Menina

José Roberto Alves Barbosa

Santiago e Ilmar, dois velhos. Ambos aprenderam a enfrentar as agruras da vida com resignação. Aprendi a admirar Santiago muito cedo. Fui apresentado ao velho Santiago por um senhor americano, também velho, chamado Hemingway. Ressaltou o fatalismo de Santiago na tentativa de fisgar um grande peixe. Descobri, então, que Santiago era pescador. Hemingway disse-me que, para aquele velho cubano, pescar era um ritual religioso e, como tal, o holocausto se fazia necessário. Compreendi, assim, a exigência do sacrifício.
Em todo sacrifício há derramamento de sangue, por isso Santiago não só feriu, também teve que ser ferido e aspergir o produto de seu esforço com o próprio sangue. A maior dor que o velho teve que enfrentar foi a frustração de não obter o peixe tão desejado. Fora comido pelos tubarões. Devoraram tudo, não só o seu amigo peixe, mas também seus sonhos e expectativas.
Ilmar também teve os seus sonhos literalmente castrados. O amor desiludido, a dialética relação entre a esperança e o desencantamento permeava sua mente. Ouvi de Santiago, pelas palavras de um homem, mas foi uma mulher que me contou de Ilmar. Margarete destacou dilemas e frustrações do velho angustiado. Pela formação religiosa que lhe é inerente, Margarete preferiu ressaltar a comicidade e os resultados da experiência do velho Ilmar. Fiquei encantado com a história do velho, também sofredor. Em face da penumbra de sofrimento que acompanha Ilmar, acabou sendo inevitável fazer associações entre os dois velhos: Santiago e Ilmar. Por conhecer os lugares por onde passou Ilmar, acabei me identificando com o cenário em que ele viveu. Às vezes, chegava a me ver caminhando nas praias de Pirangi e Areia Branca. Pelo mar. Ou la mar como preferiria Santiago. Naquelas praias, Ilmar encantava os jovens contando suas estórias. É claro, todo velho, às margens de uma praia, adora contar estórias! Mas com Ilmar era diferente. Contar estórias era como lançar sementes na terra. Participar do processo criador. Construir, ao mesmo tempo, sonhos e ilusões. Celebrar a vida.
Desde cedo, Ilmar percebeu que a vida vale a pena, quando conseguimos lhe dar sentido. Com as estórias do velho sofredor, constatamos que o homem se recusa a ser o que lhe dizem que é. Por isso, através da arte, busca transcender. A arte e a religião transcendem o homem. O próprio Deus revela-se, também na arte. Na poesia de Davi. Nos cânticos de Salomão. Na mensagem profética de Isaías. Na descrição filosófica do logos em João. Talvez seja, por isso, difícil de desassociar a arte de Deus. Hemingway e Margarete partem desse pressuposto. Hemingway, mesmo marcado pelo ateísmo, não conseguiu se desvencilhar da sombra da imagem do sofrimento humano, especialmente o de Cristo. Margarete, ao contrário de Hemingway, respira a fé cristã, por isso não tem receio de inserir, comparar e aplicar trechos bíblicos em sua interpretação do sofrimento.
Seguindo a arte de contar estórias, tanto Hemingway quanto Margarete comungam uma temática evidente no percurso filosófico e cristão. A questão do sofrimento humano. Sofrer talvez seja uma condição existencial.
Deixo-vos, portanto, com a narrativa de Margarete sobre o velho Ilmar, seguindo, com suas palavras poéticas, os desafios enfrentados pelas limitações da vida humana. Se o caro leitor ainda não conhece Santiago, recomendo que o faça. Enquanto isso, ouça a voz de Ilmar. Valerá a pena. No final, como eu, o caro leitor, também, será grato a Margarete por nos legar mais essa porção de sua habilidade literária e concluirá, como Hemingway, que o homem pode ser destruído, mas nunca derrotado.

Julho de 2001




O Velho e a Menina
Margarete Solange.
Oito Editora, 
Natal, 2014, 142 p.
Prefácio de: 
Jose Roberto Alves Barbosa
Foto da capa:
Felipe Galdino